segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A Casa Branca e o DA da Católica


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

No dia seguinte ao da queda de Saigon, ao chegar para o trabalho na UFMG, me dizia uma aluna, bem-humorada militante estudantil de esquerda, referindo-se à disputa eleitoral pelo controle do Diretório Acadêmico da então chamada Universidade Católica de Minas Gerais, ocorrida também na véspera: "Viu só? Tomamos Ho Chi Minh e o DA da Católica!" Juntava num grande "nós" de abrangência planetária o espetacular desfecho da guerra do Vietnã, que marcara longamente o panorama internacional, ao episódio de um cotidiano local de luta política estudantil.

O mundo girou, o Vietnã faz capitalismo, como a Rússia e a China, a esquerda há muito anda confusa - para não falar dos liberais de tempos mais recentes. Mas Barack Obama conquistou a Presidência dos Estados Unidos no dia 4, e o "nós" de minha ex-aluna empolga o mundo todo de modo raro, talvez inédito: emoção e choro, muito choro (com o ícone do rosto banhado de lágrimas de Jesse Jackson na televisão, ouvindo Obama no discurso da vitória em Chicago) por parte da população negra estadunidense, que vê no evento o auge simbólico da luta árdua pela restauração da dignidade e a promessa de superação definitiva do racismo; festa e emoção multi-racial pelo país afora; emoção e festa na África, na Europa, no Brasil...

Mas ressalte-se que a emoção compartilhada mundialmente tem substrato decisivo no fato da união que a liderança singular de Obama soube criar em torno de si em seu país, numa campanha em que o tom elevado da mensagem se combinou com grande eficácia e habilidade "instrumental" - e cujo produto mais imediato, aliás, o êxito da busca de apoio financeiro pela internet, possivelmente altera de vez os termos da discussão sobre financiamento de campanhas. Como mostram os dados, Obama conseguiu o feito raro entre candidatos Democratas de obter mais de 51% do voto popular. E, se venceu de maneira quase unânime entre os negros, obteve mais de dois terços do voto dos jovens de 18 a 29 anos, dois terços do voto dos eleitores latinos, ganhou o voto católico, o dos trabalhadores "blue-collar" (onde, em particular, se apontavam dificuldades quanto a sua "elegibilidade"), conquistou estados supostamente hostis e avançou mesmo no voto dos eleitores brancos em comparação com os dados a John Kerry em 2004. Não obstante a resistência da face mais negativa dos Estados Unidos e da política fascistizante em torno de "God, guns and gays" do Partido Republicano, é evidente o sentido, que todos têm ressaltado, em que Obama, além de sua peculiar história pessoal, se ajusta à transformação demográfica do país, na qual o mundo passa a poder melhor reconhecer-se.

Por mera coincidência, participei na manhã do dia 5, com a confirmação da vitória de Obama ainda fresca no noticiário matinal, de um debate na UFMG sobre "Democracia, raça e pobreza", em companhia do economista Ricardo Henriques e do rapper MV Bill. A presença forte de MV Bill (em quem se pode pretender ver semelhanças importantes com Obama, apesar de backgrounds e trajetórias muito distintas) ajudou a dar vivacidade ao debate, com as denúncias, que seus raps reiteram, da violência social e racial experimentada pessoalmente.

Mas pude ver e apontar equívocos que me parecem importantes (e que não se acomodam bem com a atividade social em que o próprio Bill se tem empenhado) quanto à questão geral de como situar-se, na perspectiva de construção de uma sociedade democrática, diante do muito que há de negativo nas relações de raças no Brasil. Em particular, o empenho, de ânimo beligerante (e compartilhado com o chamado Movimento Negro, embora Bill se dissocie explicitamente dele), de estabelecer linhas nítidas entre brancos e negros no interesse de favorecer um enfrentamento supostamente mais propício ao avanço dos negros: "por que, na imprensa brasileira, Obama é negro e Camila Pitanga é morena?"

Naturalmente, o que queremos é que raça (a condição de "negro", "moreno", "branco") seja simplesmente irrelevante do ponto de vista social - algo que Bill mesmo ilustrou no debate, de modo meio inconsistente, com o reconhecimento de que agora se tornou "incolor". Quanto a Obama, o importante é que nos Estados Unidos ele é inequivocamente um negro, justamente pela prevalência do critério implícito na proposta em que nosso Movimento Negro mimetiza o que nos acostumamos a ver de pior nos EUA: uma gota de sangue negro e se está contaminado pela feia doença da negritude. Como tenho escrito, a idéia de que uma gota de sangue negro faz de alguém um negro vale tanto quanto a de que uma gota de sangue branco faz de alguém um branco. Daí que não só seja "tecnicamente" difícil, nas condições da miscigenação brasileira, dizer quem é negro e quem não é, mas também que se torne especialmente odioso pretender separar negros de brancos, nos estratos pobres onde populações racialmente diversificadas mais convivem e se mesclam, para decidir quem deve receber bolsas, cotas ou promoção social em geral. Se vamos ter ação afirmativa, o que me parece indispensável como parte da atuação de um Estado orientado pela preocupação de compensar e talvez neutralizar a desigualdade, o critério não pode ser senão social - a promoção racial, como no exemplo exitoso de Cuba, virá como consequência da própria correlação entre raça e classe que advém do nosso pesado legado escravista. E cabe notar, já que o assunto é Obama, que essa é a posição manifestada por ele, na campanha, sobre o tema da ação afirmativa.

Voltando ao "nós" hiperbólico do começo, menos mal que no caso de agora seu alcance difira, em mais de um sentido, do de minha ex-aluna. Mas vale: ganhamos a Casa Branca. Pelo mundo afora, a conquista de seja o que for que equivalha aos DAs da Católica do dia-a-dia deve ficar mais fácil.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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