terça-feira, 18 de agosto de 2009

A peste holandesa

Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NO VALOR ECONÔMICO


O real se valoriza sobranceiro diante do dólar e de outras moedas. A moeda americana dobra os joelhos sob o peso das injeções de liquidez inoculadas pelo Federal Reserve e da prodigalidade dos déficits fiscais engendrados pelos Tesouro americano. Mas nada se compara ao desempenho do real: desaçaimados em sua incessante busca de rendimentos, entre crispações e redemoinhos, os gestores de portfólios globais, inquietos com a trajetória da moeda americana, cuidam de rearranjar suas carteiras. Encontram repouso e refrigério na apetitosa arbitragem com o coupon cambial administrado por Meirelles & Cia.

Num ritual farsesco, renova-se em sua caducidade tediosa a discussão sobre a efetividade (ou inefetividade) das intervenções do Banco Central no mercado de câmbio. A controvérsia sobre o câmbio, tão acerba quanto monótona, termina indefectivelmente com a vitória da turma da bufunfa, aqueles que se refestelam na arbitragem financeira e engordam seus cabedais sob o patrocínio das vacilações, medos e inconsistências do governo. Com essas e outras, a competitividade da indústria brasileira se debilita rapidamente, patrocinada pela estupidez de alguns em solerte aliança com a cobiça cega, descomprometida e impudente de outros.

Sergio Lamucci e Vera Saavedra Durão sublinham, em sua competente matéria de segunda-feira deste jornal Valor, a participação declinante das exportações na produção brasileira de manufaturados. Num ambiente de queda da demanda global, a valorização do real torna ainda mais grave e preocupante a decadência das exportações. Ela vai dos têxteis aos calçados, dos automóveis aos ônibus da internacionalizada Marcopolo, para finalmente culminar na degradação das vendas externas de máquinas e equipamentos da nossa indústria de bens de capital. O declínio da exportação de manufaturados, iniciado já em 2005-2006, bem antes da crise, faz parceria com a invasão das importações, prenhes de incentivos e subsídios oferecidos generosamente pelos competidores espertos. Enquanto isso, na Terra Brasilis, as burocracias judiciárias, irresponsáveis e razoavelmente desinformadas, fazem genuflexão diante dos idola teatri do livre comércio e geram desestímulos às exportações, prolatando decisões desastrosas sobre temas que não entendem.

O quadro negativo para a indústria brasileira tende a se agravar diante das brilhantes perspectivas do pré-sal, que prometem expungir definitivamente do horizonte brasileiro os episódios de crise cambial que, quase sempre, deixavam o país entregue à intempéries de graves problemas fiscais e surtos inflacionários. Parece óbvio que os mercados financeiros, restaurados sua confiança pela intervenção munificente dos Estados nacionais cuidem de antecipar a solidez do balanço de pagamento e das reservas brasileiras para os próximos anos. Sob as delícias de curto prazo do câmbio valorizado crescem as terríveis das ameaças da peste holandesa que prometem transformar a economia urbano-industrial brasileira em escombros.

A esta altura do torneio, o óbvio torna-se iniludível. Não são poucas as almas recentemente convertidas à heresia: acusam a política monetária de cumplicidade com a arbitragem financeira, ao sustentar os ainda espantosos diferencias entre a policy rate nativa e as similares globais. Mas, como é de conhecimento geral, também na seita dos economistas e quejandos habitam reputados fundamentalistas da Teologia dos Mercados. Diante das liberalidades do século, ameaçam os hereges com o mesmo ergástulo que Bento XVI recomenda para castigar os tresmalhados do rebanho que recalcitram na violação da "natureza" das coisas, tal como definida pelo discurso da Revelação.

Os chineses sofreram de forma aguda os efeitos da desaceleração global. Mas graças a estratégias eficazes, não só crescem acima da média mundial, como ainda sustentam alentados superávits comerciais, fomentados por políticas fiscais e creditícias agressivas de estímulo às exportações. Desde janeiro de 2009 o governo chinês ampliou os tax rebates para mais de 500 produtos manufaturados. O yuan praticamente não se moveu nos últimos doze meses, protegido pelas intervenções do Peoples Bank of China que não só compra agressivamente divisas como interfere duramente nas posições compradas e vendidas em moeda estrangeira dos bancos chineses.

Eles colhem altas taxas de investimento na indústria e na infraestrutura e rápida escalada no gradiente do horizonte tecnológico. No caso da China, a política de defesa do yuan e a oferta ilimitada de mão-de-obra barata se juntam para esfolar o que resta das indústrias intensivas em mão-de-obra nos concorrentes incautos e desavisados da periferia.

Já observei em outra ocasião que, na China, o aumento da participação das exportações de manufaturas foi acompanhado por um aumento correspondente na geração do valor agregado manufatureiro mundial. Isto tem uma implicação importante: o valor das exportações se elevou com a maior integração da economia ao comércio internacional e induziu o crescimento da renda interna. Neste caso, pode-se concluir que houve um "adensamento" das cadeias manufatureiras domésticas que permitiram a apropriação do aumento das exportações pelo circuito doméstico de geração de renda e de emprego.

Na América Latina, inclusive no México, a história foi outra. O México, diferentemente do Brasil e da Argentina, aumentou bastante sua participação relativa nas exportações mundiais. Mas caiu a sua parte na formação do valor agregado manufatureiro global, exprimindo a desarticulação das cadeias produtivas depois da assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, o NAFTA.

As trajetórias de Brasil e Argentina mostram que a integração das economias foi mal concebida e isto determinou não só a desindustrialização relativa, mas também na perda de posição no ranking do valor agregado manufatureiro.

A teologia do saber convencional só revelará suas nefastas consequências daqui a algum tempo.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.

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