sábado, 27 de outubro de 2012

Depois do segundo turno - Marco Aurélio Nogueira


Independentemente dos candidatos que sairão vitoriosos das urnas do segundo turno das eleições municipais, a democracia brasileira dele emergirá em boa forma física. Eleições são sempre um teste para a qualidade da democracia. Ajudam a que se visualizem as falhas e virtudes do sistema político. Fornecem um observatório para que se estudem os humores e expectativas sociais, o sucesso ou insucesso das políticas públicas, os traços da cultura política que orienta a luta interpartidária, os projetos de sociedade que estão sendo oferecidos pelos políticos e por seus partidos.

As disputas deste ano ocorreram em clima de "normalidade" e é de se esperar que os vitoriosos sejam diplomados, tomem posse e recebam, ao menos nos primeiros meses, a confiança e o apoio do conjunto da população. Em 2012 a sociedade deu mais um passo em direção à consolidação de sua democracia, processo que passou pelo declínio da ditadura militar, pela Nova República de 1985 e pela elaboração da nova Carta Constitucional em 1988 e se foi afirmando eleição após eleição, governo a governo. Três décadas depois, o País transformou-se e está muito melhor em termos políticos.

Pode-se associar a esse processo a valorização dos órgãos superiores do Estado. O prestígio adquirido pelo Supremo Tribunal Federal surge aqui como o maior exemplo, graças, em parte, ao julgamento do mensalão. Nesse episódio, trabalhando em meio a um tiroteio de aplausos e apupos, o tribunal escudou-se na interpretação da Constituição para avançar no combate à corrupção e a alguns dos maus hábitos que fragilizam a República e o Estado democrático. Sua mensagem ainda não chegou à corrente sanguínea da sociedade, pois depende de novos passos, de reformas institucionais estratégicas e do julgamento de outros casos semelhantes. Mas foi dada.

Muitos criticaram a coincidência do julgamento com as eleições, o rigor das sentenças e a doutrina escolhida pelos juízes para fundamentá-las. Viram no julgamento um fator de arbítrio e "exceção" utilizado para prejudicar o Partido dos Trabalhadores. No entanto, como escreveu o governador Tarso Genro (PT), do Rio Grande do Sul, "seu resultado não está manchado de ilegitimidade: os procedimentos garantiram a ampla defesa dos réus e, embora se possa discordar da apreciação das provas e da doutrina penal abraçada pelo relator, a publicidade do julgamento e a ausência de coerção insuportável sobre os juízes dão suficiente suporte de legitimidade à decisão da Suprema Corte". Reclama-se que o julgamento foi mais político que jurídico, mas não se leva em conta que "todo Estado de Direito tem espaços normativos amplos para permitir-se, com legitimidade, tanto condenar sem provas como absolver com provas, nos seus Tribunais Superiores. Nas decisões das suas Cortes, às vezes predomina o Direito, às vezes predomina a Política. O patamar da sua decisão legítima é alcançado, então, não somente através das suas instâncias jurídicas de decisão, mas - nos seus casos mais relevantes - na esfera da política, por dentro e por fora dos Tribunais" (Carta Maior, 22/10).

Exprimindo a desigual maturação da democratização, os embates do segundo turno foram particularmente pobres em conteúdo. As campanhas concentraram-se em estratégias "mercadológicas" de ataque e defesa. Particularmente na cidade de São Paulo, esse rebaixamento atingiu proporções dramáticas. Na cidade em que se pode encontrar tudo, não se conseguiu achar a política com P maiúsculo.

A disputa entre PT e PSDB teria inevitavelmente de ocorrer em doses elevadas, ainda que pouco houvesse de substantivo a diferenciar os combatentes. Mas foi vivida como se se estivesse a decidir a derradeira batalha de uma guerra que se deseja sem fim porque se imagina que é ela que organiza a política nacional.

Donde a manifestação de um efeito colateral: o segundo turno paulistano pode ter sido o último suspiro de uma oposição que pretendeu ser (e em alguns momentos da História chegou a sê-lo) a opção mais qualificada seja para a superação do velho Brasil de caciques oligárquicos e barões patrimoniais, seja para o oferecimento de uma alternativa à ascensão do PT.

Sem discurso, sem equilíbrio, rumo e discernimento, com excesso de fel e ressentimento, a campanha de José Serra desmereceu a sua biografia política e deve ser diretamente responsabilizada pela dificuldade que teve de agregar votos. Muitos de seus eleitores no primeiro turno devem ter condicionado a confirmação do voto a uma mudança positiva na qualidade de seu desempenho, o que não ocorreu.

O ocaso do PSDB como partido de proposta e projeto pode conviver com sua sobrevivência como legenda eleitoral e mesmo com a afirmação de candidatos competitivos a ele vinculados, como é o caso de Aécio Neves. Mas significa o aniquilamento de um patrimônio e impõe um repto ao PSDB: renovar-se radicalmente ou perecer. Terá efeitos no universo político, incentivando deslocamentos de expectativas e lealdades. Em termos imediatos, expressará o encolhimento da oposição ao predomínio do PT, embora não represente a abertura de um céu de brigadeiro no País, dada a preservação das coalizões sem eixo programático e vínculos de identidade. Mesmo na base governista, os partidos continuarão a brigar entre si, ora por motivos nobres, mas quase sempre pelo controle de mais recursos de poder.

Para nossas cidades o período que se abrirá com o fechamento das urnas não deverá introduzir mudanças categóricas. Poderá haver melhor desempenho governamental em alguns municípios, mas nada sugere que se revolucionará a gestão urbana, processo que, de resto, se espalha por períodos longos e requer a combinação de muitos fatores, que estão ausentes no contexto atual. Em termos da dinâmica política do País, porém, há indícios suficientes de que um novo ciclo se iniciará.

Marco Aurélio Nogueira - professor titular de Teoria Política e Diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp.

Fonte: O Estado de S. Paulo

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