No Eu&Fim de Semana da última quinta-feira, André Lara Resende ofereceu
ao leitor deste jornal uma excelente narrativa dos dilemas e aporias que
infestam a política econômica nos Estados Unidos. André concentra suas
considerações nos limites da política "relaxamento monetário"
(quantitative easing, QE), cuja terceira rodada Ben Bernanke anunciou em
Indianapolis.
Vou reproduzir aqui trechos dos comentários que rabisquei para uma palestra,
mais tarde publicados na revista "Carta Capital". Bernanke procurou
explicar à seleta plateia que, em circunstâncias normais, o Federal Reserve
executa a política monetária mediante o manejo da taxa de juro de curto prazo.
O propósito é afetar a curva de juros formada no mercado e, portanto, elevar os
preços dos ativos.
A crise de 2008, no entanto, nasceu das exuberâncias financeiras e
produtivas do capitalismo desenfreado, ou seja, entregue a si mesmo. O
superendividamento das famílias foi fomentado pelo elástico crescimento da
dívida intrafinanceira e acompanhado da geração de capacidade produtiva
excedente nas áreas dinâmicas do planeta. Ainda que nos países centrais a taxa
de investimento tenha sido modesta, foi mais do que compensada pela vigorosa
expansão da formação de capital fixo nas economias emergentes asiáticas.
A generosa liquidez do estímulo quantitativo vazou para as gargantas
insaciáveis da armadilha da liquidez
A fecundação entre os três movimentos - endividamento das famílias,
alavancagem financeira e construção acelerada de capacidade nos emergentes está
nas entrelinhas da fala de Bernanke quando ele justifica os quantitative
easings 1, 2, e 3. Na ressaca dos excessos, observadores atentos da cena
econômica concluíram que não se tratava de uma crise de liquidez senão de
insolvência de famílias e bancos, seguida do inevitável mergulho do consumo e
do investimento.
Na crise de 2008, ocorreu um colapso "keynesiano" das convenções
que comandavam as avaliações dos proprietários e administradores da riqueza. A
reversão das expectativas outrora exuberantes derrubou os preços dos ativos
reais e financeiros. Os métodos habituais que permitem avaliar a relação
risco/rendimento dos ativos sucumbiram diante da obscuridade total que
paralisou os mercados de dívida e de direitos de propriedade, bloqueando os
novos fluxos de gasto.
Na posteridade do colapso, a tentativa de redução do endividamento e dos
gastos de empresas e famílias em busca da liquidez e do reequilíbrio
patrimonial - uma decisão "racional" do ponto de vista microeconômico
- tornou-se danosa para o conjunto da economia, pois levou à ulterior
deterioração dos balanços, aí incluída a relação dívida/PIB dos governos
empenhados em impedir a depressão.
Em tais circunstâncias, diz Bernanke, não há outra solução senão abrir o
balanço do Banco Central para impedir a ruptura das relações débito-crédito. A
compra pelo Fed de securities de emissão publica e privada cumpriu seu papel ao
manter baixas as taxas de juro.
O propósito do QE é recuperar os preços dos ativos, particularmente dos imóveis
residenciais, uma tentativa de reanimar o consumo mediante um
"efeito-riqueza" em tempos de penúria. Desgraçadamente, os esforços
da política monetária foram contidos pelos consumidores empenhados em reduzir
as dívidas e pelas famílias assustadas com as perspectivas do mercado de
trabalho.
A liquidez injetada pelo Quantitative Easing empoça nas reservas dos bancos
e adormece no caixa das empresas. Atoladas em capacidade ociosa, as empresas
estão reticentes em mobilizar seu aparato produtivo diante do consumo
claudicante e do mortiço animal spirits dos parceiros-competidores. A taça
transbordante do "relaxamento monetário" não derramou o líquido nos
lábios sedentos do desemprego e da capacidade ociosa. A generosa liquidez do
estímulo quantitativo vazou para as gargantas insaciáveis da "armadilha da
liquidez".
Nos Estados Unidos, as expectativas de bancos, empresas e famílias são
típicas de um quadro depressivo. Trata-se de uma depressão não realizada,
apenas bloqueada pelas intervenções do Banco Central. Bernanke adverte que na
atual conjuntura, a política monetária não pode mais do que faz e a política
fiscal faz menos do que pode. Quanto à inflação, as sobras de capacidade global
e os mercados de trabalho frouxos não recomendam essa aposta.
Em meio às ousadias da política monetária e à tibieza da política fiscal, o
ex-editor do "Times" de Londres, hoje colunista da
"Reuters", Anatole Kaletsky, sugeriu que a grana do quantitative
easing fosse depositada diretamente nas contas das famílias consumidoras e das
empresas dispostas a dar emprego aos trabalhadores. "Imagine", diz
Kaletsky, "se o Federal Reserve decidir usar os US$ 40 bilhões - agora
destinados ao mercado de títulos - para depositar todo o mês US$ 130 nas contas
das famílias e das empresas até que a economia se aproxime do pleno emprego...
Caiu o tabu que impedia os bancos centrais de enfrentar a questão do emprego: a
adoção de políticas monetária radicais é uma questão de tempo."
A proposta de Kaletsky equivale à sugestão de Keynes que recomendava, em
situações depressivas como a atual, a contratação de trabalhadores que
receberiam salários para abrir e tapar buracos. O gasto com os salários dos
trabalhadores "improdutivos" deveria inflar a renda nominal e alentar
diretamente o consumo, colocando em movimento os recursos "livres" de
capital e trabalho, sem agregar nova capacidade à já instalada e excessiva.
A sugestão radical escandalizou os bem pensantes. Seja como for, os
resultados do Quantitative Easing e a argumentação de Bernanke dão azo a propostas
como a formulada por Kaletsky. Na verdade ela revela um conhecimento profundo
da estrutura monetário-financeira da moderna economia capitalista de mercado e
do modo de integração da moeda no circuito gasto-produção-rendimentos.
No entanto, se não peca pela lógica estritamente econômica, a proposta
esbarra nas relações de apropriação da renda e da riqueza no capitalismo de
todos os tempos. Essas relações impõem limites às escolhas das sociedades e dos
governos, ainda que as condições "técnicas" para a sua adoção tenham
sido criadas pela própria "socialização" capitalista das formas de
controle da riqueza.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da
Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi
incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no
Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
Fonte: Valor Econômico
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