- O Globo, 10/5/2016
“O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos, abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta a cada dia. A agiotagem explora o juro. A ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas é dramático. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do país. Não é uma existência; é uma expiação. Diz-se por toda a parte: ‘O país está perdido!.’(...) Por isso, aqui começamos a apontar o que podemos chamar de ‘o progresso da decadência’”.
Não fui eu quem escreveu isso. Foi José Maria de Eça de Queiroz, em 1871. Esta era a introdução de “As farpas”, que lançou com Ramalho Ortigão, ainda em Coimbra. Tinha pouco mais de 20 anos quando começou a esculachar em panfletos a mediocridade portuguesa no século XIX que nos legou esta herança lamentável aqui em casa. Nada mais parecido conosco. Tudo que explode hoje já despontava há 100 anos aqui e em Portugal, do qual somos uma xerox administrativa.
Esses textos de Eça, reunidos sob o título “Uma campanha alegre”, foram justamente os primeiros que me caíram na mão. Fiquei deslumbrado com a crítica social e de costumes. Não sabia que isso existia — eu era um menino. Creio que minha vida de jornalista de TV, rádio e jornal foi remotamente influenciada por ele. Eça me dava a alma viva do século XIX, atacando a estupidez endêmica, os sebastianistas de secretaria, os burocratas pulhas, os políticos demagogos, a burrice épica de um Pacheco ou do Conde de Abranhos — que fartura! Era uma sociologia ficcional de nosso destino de fracassados. Até hoje, quando vejo a TV Câmara ou TV Senado, aquelas ricas jazidas de imbecilidades, vendo as caras, frases e gravatas, eu ainda penso: “Será que esses caras aí nunca leram Eça de Queiroz?”. Não. Nada. Eles navegam intocados em sua vaidade estúpida, em sua impávida escrotidão.
Eça seria um grande cronista do momento no Brasil. O mundo ficou claro, através das personagens de Eça. Ali estavam explicados os arrepios de horror diante do teatrinho pequeno-burguês do Brasil. Já imaginaram como o Eça descreveria as dezenas de caras “lombrosianas” que sujaram nossas TVs na hora da votação? Machado de Assis também descreveu a mesquinhez de nossa vida política. Mas Machado era mais sutil na descrição de nossos malfeitos de época. Eça era propositadamente mais “grosso”, digamos.
Entre Machado de Assis e Eça de Queiroz sempre preferi o português ao nosso grande mulato. “Ah... porque o Machado é bem mais sutil!...” — diz-se, comparando-se, por exemplo, Capitu à Luiza do “Primo Basílio” (que o próprio Machado, ciumento, acusou de plágio da “Eugenie Grandet”). “Ahhh!... porque o Machado tem mais níveis de significação, mais complexidade psicológica etc. e tal...” É verdade. Hoje, eu também acho. O grande Machado atingiu subtons que Eça nem tentou, por escolha. Machado é mais inglês (Sterne, Dickens); Eça é saído das costelas de Balzac e Zola e funda uma literatura caricatural contra as perdidas ilusões ibéricas, com um riso deslavado, com uma proposital “falta de sutileza” que resulta depois finíssima. Eça cria um realismo quase carnavalizado, sem anseios de transcendência. Machado é mais “nauseado”. Deixa-se envolver por um pessimismo que o claro riso de Eça recusa. O “tipo” eciano não tem grande “complexidade”; mas, isso talvez seja o que nossa mediocridade social merece. Ele não cria personagens com uma psicologia sofisticada. Para ele, somos mesmo “tipos”. Como em seu neto Nelson Rodrigues, há nele uma superficialidade “profunda”, muito atual neste tempo em que os valores idealizados caíram no chão. Eça é um escritor político.
Quando comecei a ler o Eça, minha vida mudou. Era como se toda a névoa confusa da infância, minha família difícil de entender, vagas tias, rezas, tristes salas de jantar, secos padres jesuítas, tivesse subitamente se dissipado. O primo Basílio chegava com sua vaidade brutal e encarnava os cafajestes brasileiros, o padre Amaro me decifrava a tristeza sexual das clausuras do Colégio Jesuíta, o Conselheiro Acácio era a burrice solene de professores e políticos, Damaso Salcêde espelhava centenas de mediocridades gorduchas, Gonçalo Ramirez era o frágil caráter de hesitantes como eu. E vinha Thomaz de Alencar com sua literatice melancólica, vinha o banqueiro Cohen, esperto e corno, flutuava no ar o cheiro enjoado da Titi Patrocínio da “Relíquia” , sem falar no supremo frisson do famoso “minette” do primo Basílio na “Bovary” Luiza. Já imaginaram que circo de caricaturas o Eça faria do adunco focinho de Cunha, do Lobão de negros cabelos, do Delcídio de brancos cabelos, da “vaselínica” figura de Renan de novos cabelos, do incorrigível Collor, do jaquetão do Sarney, dos olhinhos do Cerveró e tantas outras carantonhas? Nossos olhos estão mais críticos.
Esse homem foi a maior paixão de minha vida. Com ele aprendi tudo: minha pobre escritura, o ritmo de seu texto, a importância do humor, do sarcasmo, e muito sobre a nossa ridícula loucura ibérica.
Eu amava-o tanto que — acreditem — me postava na porta do colégio na hora da saída, para ver passar um homenzinho da vizinhança ali de Botafogo que era um sósia de Eça. Quem seria? Um bancário, um contador, quem? Tinha o rosto enfezado por um fígado ruim (como o Eça) que lhe franzia a boca num escárnio risonho. Tinha a mesma pastinha de cabelo sobre a testa curta, o olho rútilo, o mesmo bigode, o gogozinho de pássaro, os braços de cegonha, a palidez biliosa. Só lhe faltava o monóculo cravado no olho irônico. Vê-lo passar me encantava como diante de um ressuscitado. Em vez de correr atrás de meninas, eu fazia isso. Pode?
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