- O Estado de S. Paulo
Minha avó sempre dizia: “Toda desgraça tem seu lado bom”. Ou então, “Deus escreve certo por linhas tortas”. Será que Deus, brasileiro, está nos levando a um Bem, através dessa chuva ácida que nos arrasa?”
Temos de encontrar um lado bom nessa crise que atravessamos. O Brasil virou um espelho, refletindo nossa imagem. Isso porque o Brasil não está nas cachoeiras e florestas; o Brasil é uma região interior dentro de nossas cabeças. E, sem dúvida, nossas cabeças estão mudando nesta crise. Hoje, somos atores e espectadores. Não nos interessa nada, nem cinema, nem teatro, nada – só o filme de suspense de nossa vida. Nunca aprendemos tanto quanto nessa novela sem fim. O País está viciado em si mesmo. Nossa crise tem personagens principais, coadjuvantes, vilões, peripécias e a expectativa de se atingir um clímax, que nos seja leve. Estamos viciados até na sujeira que presenciamos. Queremos o excremento, que nos ocultaram por tanto tempo, queremos nos deliciar com esta salada tropical de crimes, sangue, miséria, mentiras.
O verdadeiro golpista foi esse partido que nos desmanchou. O PT deu um golpe que arrebentou o discurso lógico sobre o País. Um golpe de que eles, hoje, acusam os adversários. A mentira virou a verdade oficial dessa gangue que vai deixar o Planalto, graças a Deus. Deixarão um legado de disquetes apagados, de sabotagem de todos os dados, que possam servir ao governo que vai entrar. Eles são o Bem; nós somos o Mal.
Suas ações foram tão incoerentes, tão irracionais, que os fatos superam as interpretações. Explicações políticas ou econômicas não bastam. Para entender a cabeça desses elementos, temos de recorrer à psiquiatria. Movidos por estupidez ideológica (para eles, nem o Muro de Berlim caiu), arrasaram a República.
Dizendo-se revolucionários, eles refizeram todos os problemas do Brasil arcaico. Por isso, o Brasil Colônia finalmente ressurgiu, depois das maquilagens da República patrimonialista e das repressões da ditadura. Por isso, muita gente diz que o Brasil é o inferno dos cientistas políticos e o paraíso de jornalistas. Será que sairemos deste trem fantasma para a calma administrativa de uma política normal ou a política anômala vai ficar intacta, como sempre foi, depois do vendaval?
Qual será o “lado bom” desse transe que atravessamos?
Bem, a paralisia terminou, por ora. Haverá cirurgia? A crise cria um suspense, a vida fica mais excitante. Algo está se movendo. A crise foi boa para despertar a sociedade civil, já que ninguém sabia onde estava a sociedade civil. Agora, ela está viva e influindo, dando medo nos congressistas e vagabundos aparelhados.
Do ponto de vista histórico, a crise é boa por ser intempestiva, para ensinar que não há “sentido dialético”, nem “contradições negativas”, nem lógica alguma; o mundo se move em pingue-pongue eterno e injusto. Fica claro que nada tem fim. Nem começo. Nunca teremos harmonia.
A crise também é boa para acabar com grandes euforias, pois ela prova que a Lei de Murphy, ao menos no Brasil, é infalível, mais que as leis do mercado: “Se alguma coisa pode dar errado, ela dará”. A crise desnuda nossa tragédia ibérica. A crise nos lembra que não há solução, que a ideia de solução já é um problema.
A crise é boa para que os intelectuais percam a ilusão do Sentido, a perda da ilusão do controle, que sempre tiveram. A dificuldade de tolerar o impalpável é muito grande. Contudo, talvez isso não seja ruim. A fé excessiva na finalidade avariaram muito nosso pensamento. Os intelectuais (muitos) no Brasil têm uma espécie de saudade de um mundo que já “foi bom”. Mas quando? Durante as guerras, no nazismo, no stalinismo?
Hoje em dia, quando a esperança é mais remota, talvez surja uma reflexão mais finita. A crise desqualifica o futuro e valoriza o presente. A crise exige providências urgentes. Estamos descobrindo o óbvio: que os meios são mais importantes que os fins. Só que não temos meios.
Ou melhor, temos; mas só os descobriremos na prática concreta dos fatos. Sem ideias gerais, sem narrativas dedutivas; temos de pensar indutivamente o concreto, uma prática política de erro e tentativa, pelo aumento da qualidade de vida, sem recompensas metafísicas, um “iluminismo de resultados”, uma luta possível. Mas, para intelectuais orgânicos, partidários, a prática é chata. Eles detestam contas, safras de grãos, estatísticas, tudo que interessa à direita, que ganha sempre.
Por isso, é bom que esteja acabando o romantismo revolucionário dos anos 1960, quando havia uma utopia que substituía o “possível” pelo imaginário. Nós só pensávamos em “universais”, mas, no mundo atual, só existe o singular e o mundial.
Ou seja, as coisas são mais complexas que as ideias. A matéria é mais do que o “espírito”; assim, nossos meios possíveis poderão, então, delinear um fim.
Estamos dentro de um momento histórico importante. Dentro e fora de nossas cabeças.
“Nunca antes”, um partido tomou o poder no Brasil e montou um esquema secreto de “desapropriação” do Estado, para fundar um “outro Estado”. Nunca antes, se roubou em nome de um projeto político alastrante em todos os escaninhos do Estado, aparelhado por mais de 30 mil militantes. Estão, agora, deixando todas as gavetas pilhadas para o Temer se ferrar. Creio que teremos no mínimo um período (cem dias?) de conforto ético. Pode ser que um governo de emergência dê conta do drama.
O perigo atual é que, aos poucos, o rabo do lagarto do atraso possa se recompor.
Com um leve sabor de sacrilégio, acho que só um choque de capitalismo e de participação da sociedade poderão destruir o ‘bunker’ do estamento patrimonialista, que nos anestesia. Não adianta anunciar catástrofes; é preciso ensinar a população a se defender do Estado vampírico. O resto é papo morto.
A crise pode ser uma renascença.
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