- O Estado de S. Paulo
O slogan "Eleição sem Lula é fraude" atiça, no afã de fazer do ex-presidente o centro do processo político nacional e das eleições que se aproximam.
O ano nem bem começou , mas já se sabe que janeiro será inteiramente tomado pelo julgamento de Lula em Porto Alegre, marcado para o dia
Eleição sem Lula é fraude?
O slogan atiça, encapsulado pelo afã de fazer do ex-presidente o centro do processo político nacional e das eleições que se aproximam. Traz consigo uma tática voltada para preservar e reerguer o PT. Pode ser que funcione, pois em política não há nada propriamente líquido e certo. Mas o tiro também pode sair pela culatra e aprofundar a agonia petista, empurrando o partido para o gueto, longe do mundo da vida.
Eleição sem Lula não é fraude. Como não seria sem Ciro ou Marina, Alckmin, Manuela ou Boulos. Não é fraude porque processos eleitorais democráticos são disputas entre vários postulantes e o impedimento (a morte, uma doença, a desistência ou a prisão) de um deles não macula o processo inteiro. Só haveria fraude caso houvesse censuras e proibições atrozes, interferências estranhas ou manipulação desbragada dos resultados.
Mesmo quando manipuladas ou “controladas”, eleições podem exibir virtudes. Foi o que aconteceu, em certa medida, na pior fase da ditadura de 1964. Sabia-se que as eleições transcorriam em clima de exclusão, perseguição, repressão, censura e arbítrio, mas nem por isso os democratas deixaram de disputá-las. Exploraram as fissuras do regime, suas contradições, fazendo com que fossem aproveitados os espaços em que circulava algum oxigênio. O voto nulo e a luta armada foram derrotados. A democratização avançou. A ditadura ruiu.
Se vier a ser impedido, Lula o será por ter cometido crime de corrupção aos olhos da Justiça. Impedir que condenados disputem eleições não é fraude, mas, ao contrário, é valorizar as eleições, possibilitar que ocorram com maior paridade e limpeza.
Ah, mas Lula está sendo condenado sem provas! Vários anos depois de iniciadas as investigações, acreditar na inocência de Lula é acreditar em Papai Noel. Há quem acredite, evidentemente, mas os que defendem a tese da fraude não estão entre os crentes: agem em nome da exploração da figura de Lula, devidamente santificada. Para eles, pouco importa se Lula é ou não culpado. A ideia é carregá-lo como um estandarte, um “mito” que funcionaria para resgatar um projeto de poder que em algum momento esvaneceu.
Ah, mas não é só isso! O processo que investigou, julgou e condenou Lula estaria cheio de atropelos e desrespeitos, teria avançado de forma seletiva, com o único intuito de impedir que o ex-presidente volte a governar o país. A Justiça que o condena é a “Justiça do capital”, não a do “verdadeiro Estado democrático de direito”. O ex-presidente somente copiou o que todos os políticos brasileiros sempre fizeram: valeu-se das benesses do poder, dos expedientes de caixa 2, dos agrados dos poderosos, não muito mais que isso. Enriqueceu, é verdade, mas só depois de uma longa trajetória de suor e lágrimas. Enriquecer e promover a família, além do mais, não é crime. É o que se espera de todo cidadão responsável.
Lula não é inocente, como não são inocentes muitos outros políticos brasileiros. Integra uma classe que aprendeu a fazer política num sistema corrompido que terminou por formatá-la e devorá-la. Não é melhor nem pior. Seu prontuário é enorme, mas ele também tem méritos. Cumpriu uma função na vida nacional, sabe se mexer no terreno escorregadio da política, é pragmático, não liga para ideologias e topa qualquer acordo que o beneficie.
Poder-se-ia, portanto, atenuar as culpas de Lula, distribui-las de maneira mais equilibrada. Por essa via, seria possível até mesmo livrá-lo da prisão eventual: passe-se um pano limpo na sujeira acumulada, celebre-se um “pacto” para que se comece a fazer política de outro modo e, com isso, recriem-se as bases e a cultura do sistema político. Com tudo o que tem a seu favor, Lula poderia ser um dos artífices dessa repactuação.
Nada disso, porém, é buscado pelos que falam em “fraude”. Ao se aproximar o julgamento em segunda instância, ameaçam invadir Porto Alegre com uma caravana de proporções bíblicas, integrada por ativistas de movimentos sociais, parlamentares e dirigentes petistas. A ideia é intimidar os juízes e mostrar o prestígio de Lula para a plateia.
Lula na prisão teria um efeito simbólico não desprezível: o de se ter um poderoso atrás das grades. Não muito mais do que isso. Lula, porém, é um poderoso de tipo especial: tem poder, sabe usá-lo e é ao mesmo tempo uma força popular, que fala ao coração de muitos brasileiros, dorme em seu imaginário. Não é uma reserva moral, mas um recurso político.
Ele sabe disso. A sua maneira, metamorfose ambulante, tem feito o possível para escapar do cerco em que se encontra. Fala contra os “golpistas”, mas promete aliar-se a eles e aos que estão “arrependidos”. Corteja as classes médias e o empresariado, apresenta-se como moderado, alguém que não é radical e aprecia o centro, alisa o MDB como se fosse seu bichinho de estimação, prometendo mundos e fundos caso venha a ser eleito. Combina tudo isso com uma dedicação extremada ao seu próprio mito (base de seu prestígio popular) e com a retórica indignada que compartilha com certas alas do PT.
Esticará a corda até o limite, abusando de todos os recursos jurídicos para escapar da condenação e da Ficha Limpa. Se não conseguir, tentará transferir seus trunfos para um substituto, do qual será a sombra. De um modo ou de outro, não ficará alijado da disputa. Ao contrário, irá protagonizá-la em posição de força.
Como então “fraude”?
Hoje já não é certo que Lula seja um candidato imbatível. Seu brilho não é tão intenso quanto antes. Sua força eleitoral depende do prolongamento da inoperância do campo democrático. Ele paga um preço pela trajetória que seguiu. Não pelos oito anos em que governou, mas pelo que veio depois e contou com sua aprovação. Não porque tenha sido “desconstruído” pela direita e sim porque não soube ser adequadamente construído pela esquerda. Afinal, o que ele pensa e propõe hoje, além da promessa de um retorno ao passado risonho dos anos de fartura? O que pensa e propõe seu partido?
A tática da “fraude” e do Lula-estandarte contra as elites é ruim, mas serve para agitar. É um desdobramento da retórica do “golpe”, que já bateu no teto mas ainda circula por aí.
No fundo, trata-se mesmo de agitação, não mais do que isso. A tática funciona como confissão de um partido que desistiu de disputar hegemonia (de dirigir as massas e disseminar valores democráticos), que optou por se dedicar a cuidar das próprias forças e a se recolher para lamber as próprias feridas. É uma escolha, com seus efeitos e consequências.
A insistência em fazer de Lula o seu plano A, de levá-lo como estandarte pelo país afora, de se recusar a buscar alternativas que passem por dentro da grande política, poderá fazer do PT o instrumento de que necessitam as direitas para encaixotar a esquerda e despachá-la para o espaço.
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*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp
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