- Folha de S. Paulo
Ataque à imprensa alcançou escala e organização inéditas com eleitores de Bolsonaro
No já célebre “Como as Democracias Morrem”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt mostram como a intimidação à mídia está conectada à falência do Estado de Direito. O ataque sistemático à imprensa, que passa a ser apresentada como inimiga de políticos e regimes, está fartamente descrito no livro como parte do processo de fragilização das democracias pelo mundo.
O fenômeno não é, portanto, criação do Brasil. Nem novo é por aqui. Ganhou, porém, escala e organização inéditas na disputa eleitoral deste ano, protagonizado —sem exclusividade, é verdade, mas com destaque— por apoiadores de Jair Bolsonaro (PSL).
Qualquer reportagem que incomode o candidato ou seus simpatizantes é descrita como fake. O Judiciário, o Congresso, os partidos e os adversários são alvos de tratamento semelhante. Até a Polícia Federal, exaltada por muitos dos que são “contra tudo o que está aí”, recebeu pedradas. Nenhuma instituição parece merecer voto de confiança.
Mas aqui vou me ater a ofensas contra jornalistas. Ah, não vai falar sobre a esquerda? Vou. Em 2013, fui cobrir pela Folha o ato de dez anos do PT no governo. Houve tumulto na entrada. Fui checar. Militantes viram meu crachá. Tomei um chute pelas costas e fui chamada de coisas como “cadela do PIG” —termo usado por detratores quando a imprensa era chamada de golpista, e não de esquerdista como agora.
A direção do PT emitiu nota lamentando o ataque e afirmando respeito —não expresso no discurso de seus líderes— aos profissionais de comunicação.
Em 2014, fiz reportagem que desagradou eleitores do PSDB. Um blogueiro do partido, já morto, escreveu: “Repórter que levou pontapés da esquerda ataca a direita liberal”. Novamente, pedidos de desculpas de líderes da sigla.
O episódio mais recente de manifestação de ódio veio neste ano e em grande escala, após o programa Roda Viva com Bolsonaro. Peço desculpas aos leitores que defendem a moral, os bons costumes e os valores da família, mas o que reproduzo abaixo foi expresso por quem diz pregar ideias parecidas.
“Vagabunda”, “filha da puta”, “piranha”, “mentirosa”, “bandida”, “jumenta”, “você é do tipo que merece receber menos do que os homens”, “você merece morrer”. Foi em julho. Não parou mais.
Neste mês, gravei um programa na internet sobre pesquisas. “Essa repórter é filha do cão. Petralha imunda. Nordeste, sai do Brasil!”. Outro: “Essa boca só serve para mamar mesmo”.
Na terça (25), os repórteres Rubens Valente e Marina Dias, da Folha, revelaram documento do Itamaraty que registra que, em 2011, uma ex-mulher de Bolsonaro disse ao órgão que havia fugido do país sob ameaça de morte. Hoje ela nega —a negativa já constava da reportagem antes de ela produzir vídeo contra o que chama de “mídia suja”.
Os dois repórteres foram alvo de um levante. Parte dos bolsonaristas errou a mira e atacou uma homônima de Marina. Um amigo foi às redes dizer que haviam pego a pessoa errada para Cristo. Em vão. “Olhem a cara dessa vagabunda. Putas de rua têm mais decência do que essa cadela.”
Jornalistas da TV Globo, de O Globo, do Estadão, de blogs, sites de checagem... Todos estão com as redes cheias dessas mensagens. O motim é contra a imprensa livre, crítica e profissional. Reportagem com documento oficial, três fontes e outro lado não presta. Vídeo de youtuber com teoria da conspiração sem qualquer prova? Esse vale.
Bolsonaro não representa ameaça à democracia, dizem seus apoiadores. Bolsonaro não é misógino, insistem. Ele e seus aliados, então, deveriam desencorajar oficialmente esse tipo de conduta —o que não foi feito até a conclusão desse texto. Afinal, o que dizer desses eleitores?
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