- O Globo
O mapa eleitoral do segundo turno reproduz, em cores ainda mais nítidas, a polaridade regional de 2014. Bolsonaro triunfou, quase sempre por largas margens, no Centro-Sul e nas suas extensões amazônicas. O PT venceu, avassaladoramente, no Nordeste e na Amazônia “tradicional”. A fronteira geográfica do voto foi traçada em 2006, na reeleição de Lula, e sedimentou-se nas duas eleições presidenciais seguintes. A velha tese dos “Dois Brasis”, enunciada pelo sociólogo francês Jacques Lambert em 1957, emerge como profecia oracular. Desconfio, porém, que o brilho intenso do mapa regional binário sinalize a sua explosão. A cartografia política de 2018 funciona como diagnóstico, não como prognóstico.
São raros os países, como EUA e Itália, que exibem persistentes padrões regionais de voto. O Brasil não teve nada parecido com isso até o ciclo de poder lulopetista. Lula triunfou no país todo (menos em Alagoas) em 2002. Depois, porém, o lulismo perdeu a maior parte do eleitorado do Centro-Sul, enquanto ampliava sua hegemonia no Nordeste. A derrota de Haddad marcou a conclusão do percurso, com a transferência de Minas Gerais e do Rio de Janeiro para o campo antipetista. De certo modo, é Lambert que venceu as eleições de 2018.
A tese binária da oposição entre um “Brasil moderno” e um “Brasil arcaico” está refletida no mapa do voto por município. Nele, aparecem tanto os bastiões remanescentes de voto petista em bolsões deprimidos do Centro-Sul (sul do RS, norte de MG) quanto as veredas do voto antipetista nos eixos de expansão da fronteira agrícola na Amazônia (sul do PA, RO, AC). O gráfico de dispersão do voto segundo o IDH confirma a natureza da polaridade expressa no mapa: Bolsonaro venceu em 97% dos municípios de maior renda; Haddad, em 98% do municípios de renda menor. A correlação voto/ renda é tão brutal quanto a voto/região —e a primeira explica a segunda.
Daí, nascem discursos ideológicos simétricos: a acusação petista do “voto preconceituoso” e a acusação antipetista do “voto comprado”. De fato, porém, os eleitores movem-se no campo das percepções (reais ou ilusórias) sobre seus interesses concretos. O Centro-Sul votou contra a corrupção oficial, um sistema de privilégios e compadrio, o descaso com os serviços e bens públicos. O Nordeste votou por políticas de salário e renda que propiciam o acesso dos pobres à esfera do consumo. Nas duas pontas, o voto traduz reivindicações legítimas de cidadania. Os “Dois Brasis” são “modernos”, mas de formas distintas.
Tudo que parece sólido desmancha no ar. O voto do Centro-Sul inclinou-se para os tucanos por três eleições consecutivas, durante o ciclo lulopetista. Agora, a implosão do PSDB, o impacto da Lava-Jato e o caráter plebiscitário imposto à eleição pelo PT empurraram esse eleitorado rumo a uma candidatura extremista abrigada num partido sem raízes sociais. O núcleo ideológico bolsonarista ilude-se ao imaginar que sua agenda autoritária, conservadora e ultraliberal tornou-se, subitamente, majoritária. O antipetismo, em circunstâncias singulares, é suficiente para vencer uma eleição — mas não para governar o país. O voto de 2018 não indica a direção do voto de 2022.
A hegemonia lulista no Nordeste, comprovada nas urnas pela quarta vez consecutiva, só parece indestrutível ao analista distraído. O eleitorado nordestino abraçou as políticas de renda do lulismo, mas nunca votou na agenda ideológica do PT. Logo mais, o governo Bolsonaro terá as chaves que controlam os reajustes de salário mínimo, aposentadorias e Bolsa Família. Não se deve menosprezar a hipótese de transferência, para Bolsonaro, de um eleitorado profundamente dependente de políticas estatais. A pretensão do PT de liderar uma “frente de oposição” deve ser analisada à luz dessa perspectiva de médio prazo, que ajuda a decifrar a lógica da ruptura de Ciro Gomes com o lulismo.
O brilho das estrelas não nos conta uma história sobre o presente do Universo, mas sobre o seu passado. O mapa eleitoral de 2018 é um farol apontado para trás. “Dois Brasis”? Pense outra vez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário