segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Cláudio Gonçalves Couto: O papel do STF no bolsonarismo de coalizão

- Valor Econômico

Proteção do STF às universidades pode ser um prenúncio

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, sinaliza desde a campanha para um novo modo de construir maiorias legislativas. Em vez de seguir o protocolo de todos os governos brasileiros no período pós-transição democrática, não construiria coalizões partidárias no Congresso. No lugar delas, optaria por negociações transversais, alicerçadas sobre as bancadas temáticas organizadas no Legislativo - no caso dele, notadamente, a ruralista, a evangélica e a da segurança pública.

Na avaliação do presidente eleito, tais apoios seriam suficientes para aprovar medidas caras aos membros dessas bancadas, como a flexibilização da legislação ambiental e a criminalização do Movimento Sem-Terra, a implantação de uma agenda de "moral de bons costumes" que passe pelo controle estrito do ensino e o endurecimento no tratamento com a criminalidade. Como tais bancadas se mostram favoráveis aos itens dessas pautas, o apoio já estaria em boa medida assegurado.

Claro que além dessas questões, há também outras, de grande importância, que passam em boa medida ao largo dessas clivagens particulares e, consequentemente, requerem costura de tipo distinto. A mais notável delas é a reforma previdenciária, seja qual for o formato que assumir. Os percalços do governo Temer no encaminhamento dessa agenda, antes ainda que fosse colhido pelo tsunami do escândalo da JBS, mostram como é difícil aprovar temas espinhosos mesmo a um governo hábil para lidar com o Congresso.

Não por outra razão, causa espécie a declaração do futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, de que não de deve dar importância às declarações do futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, acerca da reforma da Previdência. Segundo o economista, a fala do político acerca de assunto econômico é besteira, tanto quanto seria a sua, se falasse de política. Parece esquecer que uma reforma econômica, para além de seus méritos intrínsecos, precisa ser aprovada por um Congresso Nacional apinhado de políticos. Se for por meio de emendas constitucionais, então, são necessários mais políticos ainda - 3/5 das duas Casas do legislativo, para ser mais exato. E a reforma da Previdência é impossível sem emendar a Constituição.

É por isso que a conversa sobre deixar de lado o presidencialismo de coalizão, como se ele não fosse uma decorrência do desenho de nossas instituições políticas, mas uma caprichosa escolha dos governantes, é pouco plausível - ao menos, claro, que o presidente e seus apoiadores armados optem por se manter no limite definido pela institucionalidade.

Se nada mais fosse necessário, há uma razão decisiva para isso: quem organiza o processo legislativo são os partidos políticos, por intermédio de seus líderes. São eles que indicam os membros para comissões (assim como os removem), requerem urgência para projetos em tramitação, negociam a pauta com a Mesa Diretora, solicitam a votação nominal de projetos de lei etc. Os líderes das bancadas temáticas, por mais numerosas que essas sejam, não dispõem de tais prerrogativas. Ou seja, sem negociar com os partidos, fica muito difícil fazer andar o processo decisório.

A construção de uma coalizão não é difícil para o próximo governo. O PSL, partido do presidente e composto predominantemente por neófitos (como mostrou Alberto Almeida em artigo no site Congresso em Foco), dispõe de 10% das cadeiras na Câmara e de 5% no Senado. Somado aos partidos de adesão (aqueles que aderem a quaisquer governos, MDB incluso), pode chegar a 58% nas duas Casas. Se obtiver o apoio do Novo e do DEM, atinge cerca de 65% em ambas - superior, portanto, ao necessário para aprovar emendas constitucionais. Mesmo que haja algumas defecções nesses partidos, o que deve ser pouco significativo, ainda há a chance de obter o apoio de ao menos algumas frações do PSDB, o que compensaria as eventuais perdas. Tem-se, assim, maioria garantida para governar e veremos nascer o bolsonarismo de coalizão.

A oposição de esquerda, fraturada, caso não sofra defecções, atingirá cerca de um quarto das cadeiras nas duas casas (28% e 23%), insuficiente para fazer frente a iniciativas legislativas do governo. Mesmo com auxílio de uns gatos pingados apegados a princípios politicamente liberais de PSDB e dos partidos de adesão, será difícil impedir que o governo aprove no Legislativo uma agenda de mudanças radicais não apenas (ou, talvez nem tanto) na economia, mas em áreas como direitos individuais, salvaguardas a minorias e proteção ao meio ambiente. Ademais, medidas nesses âmbitos podem ser tomadas administrativamente, diretamente por ação do Executivo, sem depender de nova legislação.

Por esse motivo, a disputa com a oposição em relação à preservação de princípios e práticas politicamente liberais, da proteção a minorias e da preservação ambiental não deverá ter seu terreno privilegiado de disputa no Congresso, mas no âmbito judicial - em especial no Supremo Tribunal Federal. Medidas que venham a violar tais princípios, como as diversas variantes do "Escola sem Partido", uma maior leniência para os excludentes de ilicitude, as restrições aos direitos dos homossexuais, a revisão de demarcações indígenas, a confusão entre religião e Estado e assim por diante, deverão ser levados ao Supremo. O mesmo valerá para tentativas de intimidação da imprensa não alinhada, da perseguição a servidores públicos ou da restrição à liberdade de pesquisa e ensino.

A questão é saber como o STF se comportará diante do provável aumento de demandas diretamente relacionadas à atuação de um governo dirigido por um presidente cujo compromisso com princípios e valores politicamente liberais e afinados com direitos pós-materialistas é, para dizer o mínimo, precário. Ele obteve maioria nas urnas e contará com outra no Congresso, mas cortes constitucionais têm o papel precípuo de atuar como forças contramajoritárias e tomar decisões difíceis, de modo a evitar que tais maiorias (efêmeras ou permanentes) esmaguem minorias, dilapidem o patrimônio ambiental e suprimam o pluralismo.
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Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

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