O
manual do nacional-populismo ainda não chegou à página final
Difícil
recusar o diagnóstico de que ainda pior que um primeiro governo
nacional-populista será sempre o segundo, ocasião em que o aspirante a
autocrata, reeleito, tentará levar a cabo a obra de deliberada destruição
institucional encaminhada antes. Com força e ambição dobrada, no segundo
mandato a estratégia de concentração de poder seguirá sua “ascensão
irresistível”, ainda que em meio ao caos que todo político autoritário
necessariamente fomenta e de que não por casualidade se nutre.
É
de tal ordem a nossa circunstância que, mesmo quando não se reelege, o
potencial autocrata consegue mobilizar forças que a ele cegamente obedecem e
lhe permitem sobrevida. Não importa que esteja fora do poder, ainda será capaz
de suscitar paixões coletivas e insuflar ações que nem com muita boa vontade
podemos qualificar como minimamente razoáveis. É o caso do ex-presidente Donald
Trump, um dos “autores” mais em evidência do manual populista de exercício do
poder e esvaziamento das formas civilizadas de mando, a demonstrar que hoje o
risco está por toda parte, e não apenas nas sociedades em que a democracia
continua a ser uma “plantinha tenra”.
Trump,
como é notório, não reconhece a derrota. Volta a ocupar insolentemente a cena,
reiterando, como mantra, que triunfou duas vezes sobre os adversários, em 2016
e em 2020, e haverá de vencer uma terceira, em 2024. Em circunstâncias normais,
o riso corroeria a “grande mentira” trumpista, deixando a nu o caráter golpista
das suas proclamações, de resto não atestadas por nenhuma autoridade eleitoral,
seja em que nível for. Mas, como dissemos, temos estado bem longe da
normalidade, o que recomenda cuidadosa atenção sobre os perigos que nos
circundam.
Negar a evidente derrota é algo muito grave. Valer-se de ambientes e recursos “virtuais” para montar uma realidade paralela em que vivem aprisionados milhões de fanatizados é um desafio inédito para as democracias. Equivale a assumir uma atitude subversiva em face do governante legítimo, questionar o mecanismo da alternância e, em perspectiva, transformar o adversário político em inimigo interno. Numa palavra, equivale a postular para si, assim que possível, já na próxima rodada eleitoral, o poder que se atribui a déspotas ou, antes, que eles mesmos se atribuem, expropriando a cidadania.
O
manual do nacional-populismo, assim rascunhado até na tradicional democracia
norte-americana, ainda não chegou à página final e conhece outras modulações.
Há versões de esquerda, como, bem perto de nós, a venezuelana, com resultados
práticos que talvez superem os produzidos a seu tempo pela atroz ditadura de
Pinochet. Nayib Bukele, em El Salvador, consegue fervorosos admiradores na
direita verde-amarela ao lançar o povo – o “seu” povo – contra a Suprema Corte.
Na memorável República Francesa, de trajetória conturbada, mas, de todo modo,
altamente representativa do Ocidente democrático, militares extremistas seguem
a cartilha da islamofobia e agitam a ameaça, temida entre todas, de “guerra
civil”.
Nosso
próprio presidente nacional-populista contabiliza, já na metade final do
mandato obtido em 2018, atropelos consideráveis à democracia – alguns de
demorada e custosa reversão. Seria impróprio atribuir-lhe a paternidade da
tática primária e manipuladora do “nós contra eles”, mas havemos de convir que
a elevou ao estado da arte. A “utopia” de Jair Bolsonaro – para usar a imagem
cunhada por Javier Cercas sobre o tenente-coronel Tejero Molina, que certa vez
ocupou a tiros o Parlamento espanhol – é a de um País reduzido a quartel, com
todo o pessoal uniformemente treinado para combater uma guerra absurda, por
anacrônica, contra “eles”, os “comunistas”, que nem existem mais como força
antissistema.
Pulsões antiestablishment,
ao contrário, estão disseminadas mundialmente entre os diferentes nacionalismos
autoritários. A demagogia trumpista explora insuficiências do sistema eleitoral
para, como vimos, construir uma “narrativa” recheada de eleitores fantasmas,
mortos e imigrantes ilegais que lhe teriam roubado a vitória. A demagogia
bolsonarista, em face de um sistema de votação muito diverso e muitíssimo mais
seguro, vai pelo mesmo caminho, porque o que interessa não é o fundamento ou a
verossimilhança deste ou de qualquer outro argumento, mas a “desconstrução” das
instituições e a difusão de um clima generalizado de sombras e suspeitas. Num
caso como no outro, o triunfo do oponente nunca é legítimo. Não pode ser. Não
pode haver adversários de boa-fé.
É
iluminadora a afirmação, recentemente feita pelo presidente Joe Biden, de que o
conflito central da nossa época opõe democracias e autocracias. Populistas
podem ser eleitoralmente competitivos e nada impede que, apelando a recursos
retóricos duvidosos e valendo-se sem cerimônia das alavancas do poder, vençam
uma vez e voltem a vencer mais vezes. Sempre que o desfecho for esse, nenhum
sentido terá a fanfarra “libertária” das suas performances histriônicas,
pois os países que controlam não mais estarão no rol das grandes democracias.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Um comentário:
Brilhante e claro, para dizer o mínimo. De aplaudir.
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