O Globo
A insensibilidade do presidente Bolsonaro
diante do sofrimento alheio, quando ele é difuso, é sinal de que é incapaz de
compreender o alcance do papel de um presidente da República, que chegou aonde
chegou pelo voto dos cidadãos, e não por escolha divina. Bolsonaro é capaz de
comover-se com a morte de um rapper conhecido por fazer “funk de direita” ou de
um militar no exercício de sua função, mas é incapaz de homenagear um grande
artista nacional que seja de esquerda ou simplesmente adversário de sua maneira
de ver o mundo.
Para ele, existem apenas os que são seus apoiadores ou os adversários, não há
brasileiros como coletividade, todos os que deveriam estar representados por
ele como presidente. Não viajar para a Bahia diante da catastrófica inundação
que deixou milhares de desabrigados e mais de 20 mortos, para passear de jet
ski no sul do país, é mais um desses episódios que demarcam sua psicótica
personalidade. “Espero não ter que voltar mais cedo”, comentou, na esperança de
não interromper suas férias.
Até mesmo por cálculo eleitoral, o candidato à reeleição deveria estar de
prontidão para gestos de solidariedade, mesmo vazios de conteúdo. Mas Bolsonaro
não esconde sua falta de empatia, e esse sincericídio não é sinal de honestidade
intelectual, mas de incapacidade doentia de se relacionar socialmente com
adversários, vistos como inimigos, ou de sentir uma dor coletiva.
Usar politicamente sua filha de 11 anos para marcar posição contra a vacinação
infantil é também demonstração de insensibilidade diante da coletividade.
Bolsonaro não entende que há ações governamentais que precisam ser tomadas em
benefício do coletivo, especialmente quando se trata de uma crise sanitária. A
altamente contagiante Ômicron exige dos governos medidas de proteção da
sociedade, como a maioria dos países democráticos do mundo está fazendo, sem
que restrições signifiquem um ataque à liberdade individual.
Nunca foi tão oportuna a frase famosa atribuída ao filósofo inglês Herbert
Spencer: “A liberdade de cada um termina quando começa a do outro”. Não houve,
em nenhuma ocasião, demonstração de sentimento pela perda de quase 620 mil
vítimas da Covid-19, apenas referências superficiais ao fato, como a confirmar
o que ele sempre disse: a morte é inevitável diante da pandemia, não há o que
fazer.
O papel dos governos não é submeter-se à inevitabilidade da morte, mas criar
condições de adiá-la o mais possível para seus cidadãos, proporcionando um
sistema de saúde eficiente e adotando medidas preventivas, como vacinação em
massa, incentivo ao uso de máscara, distanciamento social, no caso da presente
pandemia.
Bolsonaro nunca visitou um hospital durante a fase mais aguda da crise
sanitária que vivemos; ao contrário, incentivou a certa altura a invasão dos
hospitais com o objetivo de flagrar supostas farsas na contagem dos mortos.
Aproveitou todas as oportunidades para se colocar contra a vacinação, por atos
administrativos ou simples retórica, politizando uma pandemia que mudou o
mundo, o modo de viver das pessoas e exigia que houvesse no comando do país um
líder capaz de organizar as ações coletivas na direção correta.
A cada atitude dessas, Bolsonaro une a maior parte dos que votaram nele para se
livrar do PT na direção contrária, transformando o antipetismo que o levou ao
poder numa reação que poderá levar Lula à Presidência logo no primeiro turno,
pois se mostrou durante seu desgoverno uma solução pior que aquela que ele
representava quando foi eleito. A anticorrupção, grande motor para levá-lo à
eleição, já não se mostra suficiente para evitar o PT, pois o bolsonarismo
transformou-se num nicho radicalizado que não justifica um voto útil contra
Lula ou a esquerda.
Ao colocar-se a favor do fisiologismo e contra o combate à corrupção, para
salvar-se e a sua família, Bolsonaro abre caminho para a volta do lulismo,
enquanto não aparecer algum candidato que se mostre viável para impedi-lo de
permanecer no governo. A volta do PT poderá ser facilitada por essa
demonstração de que o voto em Bolsonaro fez o país regredir em todos os
projetos que estavam colocados além das ideologias, como a política ambiental,
a desagregação do sistema de saúde, a desmobilização do já frágil sistema
educacional. O maior eleitor de Lula é o fracasso do governo de Bolsonaro.
Volto a escrever no dia 2 de fevereiro. Que 2022 seja mais leve!
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