Valor Econômico
Age como tirano o governante que persiste
em se divertir em vez de compadecer e cuidar de seus governados que sofrem
Nos últimos dias causa perplexidade a
indiferença com que o presidente da República lida com o desastre das
inundações no sul da Bahia e norte de Minas. Enquanto seus governados padecem
sob as águas, Jair Bolsonaro farreia sobre elas, no Guarujá ou em Santa
Catarina.
A catástrofe ambiental que flagela milhares, destruindo casas e bens, ceifando vidas e arruinando a já precária infraestrutura local, é insuficiente para comover o presidente, que frui de aprazível folga à beira-mar como se nada de grave acontecesse no país que ele pretensamente governa. Questionado por um adulador sobre sua permanência até o fim de semana do Ano Novo, retorquiu reveladoramente: “Espero que não tenha que retornar antes”.
Tal declaração suscita outra pergunta: o
que ainda precisaria acontecer para que Bolsonaro atinasse quanto à inadequação
do momento para folguedos nas águas verdes do litoral catarinense? Seu
comportamento agora, bem como sua conduta pregressa, sugere não haver nada que
possa sensibilizar o presidente quanto àquilo que momentos como este requerem:
recato e empatia.
Desde que a situação se agravou com as
fortes chuvas, na segunda semana de dezembro, o presidente encontrou tempo para
ir até o local da tragédia num único momento, dia 12, quando sobrevoou áreas
atingidas. Em todo o período, manifestou-se sobre o que ocorria ali apenas três
vezes, com declarações e aparições reproduzidas no Twitter dele e no da
Secretaria de Comunicação da Presidência. As providências palpáveis, deixou
para alguns de seus ministros, governos estaduais e municipais. Como noutros
momentos, Bolsonaro delegou a terceiros a responsabilidade pelo encaminhamento
de ações que a ele caberia liderar.
Enquanto alguns trabalhavam, o presidente
folgava. Não à toa o tópico #BolsonaroVagabundo figurou entre os mais postados
nas redes sociais nesses dias.
Todavia, sobrevoos e declarações não
solucionam problemas concretos de flagelados; são apenas demonstrações
(necessárias) de alguma preocupação e empatia. Mais efetivo, por certo, é
trabalhar - algo complicado de se fazer durante a folga. Nem seria de se
esperar que o presidente fosse seguidas vezes à região ou mudasse a sede do
governo temporariamente para lá - embora, costumeiramente em governos normais,
coisas assim sejam feitas. Entretanto, diante das incumbências do cargo, um
governante sensato interromperia o descanso, deixando-o para momentos menos
trágicos.
O problema é que Bolsonaro está muito longe
de ser esse governante sensato. Por um lado, é provável que o desdém para com o
problema o desgaste ainda mais. Por outro, a incapacidade para notar a
gravidade de sua postura decorre de uma espantosa e profunda ausência de
compaixão.
O filósofo Renato Janine Ribeiro aborda a
importância desse sentimento para a vida em sociedade em seu último livro,
“Duas ideias filosóficas e a pandemia”. Busca em Jean-Jacques Rousseau a noção
de pitié no original em francês, que literalmente poderia ser traduzida como “pena”
ou “dó”, mas que ele prefere verter como “compaixão”, pois o termo denota um
sentimento mais igualitário e, portanto, respeitoso. Janine Ribeiro aponta que
para Rousseau “o que nos caracteriza [como seres humanos] é a capacidade de
compartilhar o sofrimento de qualquer outro ser vivo. Observamos outros
viventes sofrerem - e então sofremos juntos.”
Pois bem, Bolsonaro já demonstrou repetidas
vezes a incapacidade para compadecer de outras pessoas. Ora faz o culto à
tortura e a torturadores, escarnecendo das vítimas; ora faz troça da
dificuldade para respirar dos acometidos pela Covid; ora faz pouco caso dos
mortos pela doença: “E daí, quer que eu faça o quê?”. Há pouco tempo, em
setembro último, disse sobre pessoas que morreram: “Muitas tinham alguma comorbidade,
então a Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas”.
Para Bolsonaro, que com seu negacionismo contribuiu para disseminar a doença,
ela apenas acelerou um iminente descarte de seres humanos menos aptos a viver
por mais tempo. Se isso não for falta de compaixão, o que mais seria?
Ironicamente, o próprio Bolsonaro teve em
seu benefício, durante a disputa que o levou à Presidência, a compaixão de
muitos de seus concidadãos. A facada que poderia lhe ter ceifado a vida em Juiz
de Fora despertou a imediata solidariedade de muita gente - inclusive de
adversários, que condenaram o atentado e compadeceram dele. Da mesma forma,
muitos eleitores foram tocados pelo seu sofrimento, amplamente divulgado por
vídeos, passando a vê-lo com mais simpatia, talvez ao ponto de votar nele.
Aliás, esse é um aspecto importante, em que
se podem confundir causa e consequência. Quem compadece de outro ser, nele vê
algo valoroso, mas não é a compaixão que gera a valorização do outro - e sim o
contrário. Compadecemos daqueles aos quais damos valor, seja porque os vemos
como dignos, amamos ou os temos como iguais a nós.
É mais difícil ter compaixão por algo ou
alguém que se despreza, odeia ou repugna. Eis porque não se costuma ter pena de
ratos e baratas ao exterminá-los e porque o discurso de ódio costuma equiparar
inimigos a seres repulsivos, tais como ratos ou baratas, justificando
violências que se praticam contra eles e até mesmo sua eliminação.
Apesar do dever de governar seus
concidadãos, ao não compadecer de seu sofrimento, optando por se divertir em
vez de trabalhar por seu bem, o presidente Bolsonaro explicita a indiferença, o
pouco apreço ou mesmo o desprezo que nutre por eles. Mas como bem governar ao
acalentar tais sentimentos por seus governados, isto é, por aqueles que merecem
seus cuidados?
Agindo assim, o presidente demonstra que a
tirania (má forma de governo a cargo de um indivíduo, que se beneficia em
prejuízo da sociedade) não corresponde só a jeitos autocráticos de gerir o
Estado, mas também a maneiras propositalmente indiferentes, displicentes e
danosas para com os cidadãos. Tiranos são governantes sem compaixão. Bolsonaro
não a tem.
*Cláudio Gonçalves Couto é
cientista político, professor da FGV-SP
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