O Globo
Piraíma’á subiu numa árvore bem alta para
caçar e de lá despencou. Uma queda acidental. Ainda falou algumas palavras,
antes de morrer. O fato ocorreu no domingo, 26. Tinha, segundo Patriolino, um
funcionário da Funai, 48 anos. Piraí, como era conhecido, era líder do povo
guajá na aldeia Juriti, na Terra Indígena Caru, no Maranhão. Quando estive lá
com o fotógrafo Sebastião Salgado, foi o que falou de forma mais eloquente do
que todos os outros sobre os riscos do desmatamento.
As horas finais antes do seu enterro, na segunda-feira, mostram a dureza do cotidiano indígena. Os que o acompanhavam andaram até a aldeia, chegando lá às seis da tarde. Foram buscar reforços e avisar à Funai. Voltaram andando pela mata na enorme distância até o local onde ele havia caído. De lá trouxeram o corpo, chegando a uma da manhã. Quem me contou tudo isso foi Salgado, repassando áudio do amigo Agostinho de Carvalho:
— Você veja seu Salgado o quanto é longe,
eles vieram às seis da tarde no Juriti, na aldeia, e voltaram lá para o igarapé
do Juriti, de noite, e lá apanharam ele do outro lado do igarapé e quando deu
uma hora da manhã chegaram com ele no posto da Funai. Veja como o índio anda,
você conhece aquela distância. Só índio mesmo para fazer um percurso daquele.
Nos Awá Guajá não há uma liderança única,
um tuxaua. Há várias lideranças que se destacam. Piraí era claramente uma voz
forte dos Guajá. O povo é considerado de contato recente, só os mais jovens
falam português. Uma liderança dessas que se vai tão cedo é uma enorme perda.
Esse foi um ano de ameaças, perdas,
resistência e vitórias para os indígenas brasileiros. No Vale do Javari morreu,
em outubro, uma forte liderança dos povos da região, Ivininpapa Marubo. Segundo
a União dos Povos do Vale do Javari, ele foi “um estadista, um humanista, um
autêntico líder ancestral, era o cacique geral do povo marubo”. Uma das maiores
preocupações de Ivininpapa era com os retrocessos das políticas públicas em
relação à proteção territorial e da proteção dos povos indígenas.
Houve, ainda, o cerco às terras indígenas
pelos garimpeiros, grileiros e madeireiros. No STF, o julgamento da tese do
marco temporal foi visto como o maior risco e seis mil indígenas acamparam na
capital. No Congresso, tramitam projetos que restringem a demarcação de terras
indígenas, além da proposta do governo Bolsonaro de liberar mineração em terras
indígenas. Um dos projetos mais ameaçadores é o PL 490, que restringe a
demarcação de terras indígenas.
— O projeto passou na CCJ da Câmara e a
Comissão de Agricultura, que já o analisou, pediu que vá direto ao plenário. O
PL, além de restringir a demarcação, traz a tese do marco temporal para a
legislação e ainda tenta regulamentar o garimpo em terra indígena. A
Constituição proíbe e por isso não poderia mudar por PL, mas eles tentam
—explica Adriana Ramos, do Instituto SocioAmbiental.
Apesar de tudo, os primeiros povos do
Brasil contaram algumas vitórias neste ano difícil para todos, indígenas ou
não.
— Eles se mobilizaram, mostrando uma grande
capacidade de resistência e luta. Evitaram a aprovação do marco temporal, mas o
assunto voltará a ser julgado em junho. A presença dos líderes indígenas na
COP26, principalmente da Txai Suruí na abertura, mostrou a atenção do mundo
sobre o assunto —completou Ramos.
Pela visão do seu povo, Piraima’á agora é
um karauara e na sua vida após a morte ele viverá numa floresta celestial, com
conexão com o mundo daqui.
“Se eu morrer, minha pele fica na Terra, as
pegadas do meu pé ficam na Terra. Minha pele torna-se a . Meu coração, minha
alma e minha carne vão para o céu, tornam-se karauara. Ficam dançando e
cantando, transformados em karauara. As penas brancas e vermelhas (que adornam
os karauara) ficam no céu.” Isso está escrito no livro “Crônicas de caça e
criação” de Uirá Garcia, o antropólogo que mais estudou o povo Awá Guajá.
Enquanto viveu, Piraima’á protegeu parte do
território brasileiro da invasão de grileiros e de madeireiros. Com os seus
parentes, como eles se chamam, defendeu nosso patrimônio natural, vivendo da e
para a floresta, entendendo cada parte daquela terra que parece um paraíso
verde cercado de devastação por todos os lados. Num descuido em cima de uma
árvore, Piraí escorregou e voou no ar antes da queda fatal. Suas pegadas
ficarão na Terra.
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