Valor Econômico
Sarney e Collor, os mais atacados,
contribuíram para a estabilidade
Daqui a nove meses, será realizada a nona
eleição direta para presidente da República no Brasil, decorridos 37 anos do
fim do regime militar. O pleito ocorrerá em meio à forte polarização que vem
caracterizando a política nacional desde o primeiro mandato presidencial de
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006) e que se acirrou com a reeleição de Dilma
Rousseff em 2014 e a ascensão de Jair Bolsonaro, em 2018. É bem provável que a
disputa transcorra num ambiente de grande instabilidade.
Depois de ter a ordem institucional interrompida em 1964, quando, apoiados por civis interessados em tomar atalhos para chegar ao poder, chefes militares derrubaram o presidente João Goulart num contexto de grave crise econômica, o Brasil custou a reconquistar a estabilidade política. O poder só foi devolvido aos civis 21 anos depois e, mesmo assim, por meio de eleição indireta realizada pelo Congresso.
A chapa vencedora tinha um integrante da
oposição - Tancredo Neves - e um prócer da ditadura - José Sarney. Foi o jeito
encontrado para acalmar militares inconformados com a perda iminente de poder.
Ademais, a união da oposição com dissidentes da situação seria suficiente para
derrotar Paulo Maluf, candidato do governo militar. Antes disso, tratou-se de
impedir que a transição se desse por meio do voto popular - em 1984, o nome
mais bem cotado para triunfar numa eleição direta era o de Ulysses Guimarães,
rejeitado pelos generais.
No país onde a vida imita a arte, o destino
apareceu na undécima hora para nos testar. Eleito em 15 de janeiro de 1985, Tancredo
começou a sentir dores no abdômen nos dias e semanas seguintes, mas decidiu
esconder o fato de todos. Seu temor era que uma possível doença não o deixasse
assumir a Presidência, tornando possível um retrocesso na transição de regime.
No dia 14 de março, véspera da posse, ele foi internado às pressas e
submeteu-se à primeira de uma série de cirurgias, até falecer em 21 de abril.
Em seu lugar, assumiu Sarney, o vice.
No ano anterior, milhões de brasileiros
foram às ruas para exigir a volta do voto direto para presidente. A proposta de
emenda constitucional Dante Oliveira, que a restabelecia, não passou da Câmara,
disseminando sentimento amargo de frustração, tangível apenas quando o
Parlamento vota contra o desejo da maioria da população. O moral só elevou-se
quando Tancredo derrotou Maluf.
Depositaram-se no ex-governador de Minas
Gerais todas as esperanças para o restabelecimento da democracia e a saída do
país da crise econômica. Informações sobre a enfermidade de Tancredo só
começaram a circular em Brasília na noite do dia 14. Sarney, político da
ditadura, assumir a Presidência no lugar de Tancredo soava à maioria como
conspiração, não do destino, mas de quem nos subtraiu a democracia.
O ex-governador do Maranhão tornou-se o
primeiro presidente da Nova República nas piores condições. João Figueiredo,
último general-presidente, recusou-se a lhe passar a faixa e deixou o Palácio
do Planalto pelos fundos. Se já não bastasse o fato (antipático, por definição)
de assumir o cargo do “salvador da pátria”, Sarney enfrentava risco real de não
subir a rampa do palácio. No meio militar, era audível o burburinho de golpe,
ameaça contida apenas pela firmeza do novo ministro do Exército, Leônidas Pires
Gonçalves, que, na noite do dia 14, telefonou ao vice-presidente e lhe deu
garantias para tomar posse.
Restabelecer a democracia em meio a um
cenário político e econômico tão desfavorável, com inflação anual próxima de
200%, foi um feito que, olhado em perspectiva, deveria dar a Sarney
reconhecimento de que pouco se ouve falar. Seu mandato foi marcado por três
tentativas frustradas de estabilização de preços, por denúncias de corrupção e
pela extensão do mandato para cinco anos, obtida no Congresso por meio de
concessões de rádio a parlamentares.
Um dos presidentes mais criticados da
história do país, Sarney teve o mérito de não flertar uma só vez com tentações
autoritárias, que, em Brasília, reaparecem a cada crise política. Em sua
gestão, instalou-se a Assembleia Nacional Constituinte que estabeleceu, nos
capítulos de direitos e garantias fundamentais da Carta Magna do país, os
princípios para a construção da nação que não somos, como o fim da censura e a
proibição de qualquer forma de discriminação.
Na economia, apesar do malogro no combate à
hiperinflação, o governo tomou decisões importantes como a criação da
Secretaria do Tesouro Nacional e o fim da conta-movimento do Banco do Brasil e
das operações de fomento do Banco Central.
Fernando Collor venceu a primeira eleição
direta pós-ditadura apresentando-se como o anti-Sarney, tirando proveito dos
escândalos que ocuparam o noticiário desde 1985. Em setembro de 1992, perdeu o
mandato, acusado justamente de corrupção (em dezembro daquele ano, o STF o
inocentou). Olhando para trás, nenhum governo da redemocratização, com exceção
ao de Itamar Franco (1992-1994), transcorreu sem casos ruidosos de corrupção,
envolvendo não necessariamente os presidentes, mas assessores, ministros e
aliados.
Também sob Collor, a estabilidade política
foi colocada em xeque, mas prevaleceu a democracia. Vale registrar, por
exemplo, que as investigações que, em última instância, trouxeram à luz do dia
elementos constrangedores para o então presidente foram conduzidas por
instituições públicas, como a Receita Federal e a Polícia Federal. Collor não impediu
que ambas realizassem seu trabalho, fato que deve ser louvado como importante
contribuição à democracia - é isso que se espera de governantes eleitos, mas
todos sabemos que nem sempre funciona assim.
Na economia, o governo fracassou em duas
tentativas de estabilizar os preços (Collor I e II), mas promoveu avanços que,
adiante, contribuíram para o sucesso do Plano Real, como a adoção de um
cronograma de redução unilateral de alíquotas de importação, a abertura da
conta de capitais, a acumulação de reservas cambiais e a renegociação da dívida
externa.
O objetivo destas reflexões, iniciadas na
coluna passada (“Brasil: quem paga ‘pra’ gente ficar assim?”, 23/12/2021), é
mostrar o árduo caminho que levou o país a conquistar a estabilidade política e
econômica e apontar os riscos que a vêm ameaçando desde 2011. A série
continuará no dia 20 de janeiro.
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