Revista Veja
Quando a celebração da igualdade interdita o debate, o risco é o flerte com a censura ‘do bem’
Chico Buarque tem todo o direito de cantar ou não cantar o que bem entender. Jornalistas têm pleno direito de discordar de artigos publicados nos veículos onde trabalham. Assim como é assegurada aos cidadãos residentes em países democráticos a prerrogativa de se manifestar livremente dentro dos preceitos legais e é, também, dever de todos fazê-lo na obediência da civilidade. Afinal, como bem registra o título do espetacular documentário (Globoplay) sobre Nara Leão, o canto é livre. Ou deveria ser. Da série nasceu a polêmica da vez porque em um dos episódios Chico Buarque declara que não cantará mais Com Açúcar, com Afeto para “não desagradar às feministas” que repudiariam o (suposto) caráter machista da canção composta em 1967 a pedido de Nara.
Repetindo, o autor é livre para fazer o que
quiser. Só não dispõe de autonomia para sugerir que quem queira cantar e/ou
gostar da música seja defensor do machismo. Dias antes, profissionais da Folha de S.Paulo assinaram uma
carta aberta à direção do jornal contestando o artigo do antropólogo Antonio
Risério sobre racismo.
Até aí, tudo bem, não fosse o fato de que o
abaixo-assinado pregava a proibição de publicações com teor semelhante. O
protesto, aliás, pouco ou quase nada tinha a ver com o que estava de fato
escrito no artigo em questão. Na essência, acusou-se ali o jornal de ser
racista. A isso se dá o nome de censura expressa na tentativa de demonstrar
superioridade moral em relação ao diverso. Justamente o contrário do respeito
ao próximo, matéria-prima na qual se sustenta a arte da convivência coletiva.
Produto esse em falta no mercado do debate público, na abordagem de questões
que o mundo hoje nos apresenta como essenciais para a evolução da humanidade.
Natural e, sobretudo, necessário que
determinados comportamentos, sejam eles na palavra, na ação ou no pensamento,
antes vistos como normais, se tornem inaceitáveis e sofram adaptação ao novo
tempo. Trata-se de um benfazejo aprimoramento das relações humanas.
“Quando a celebração da igualdade interdita
o debate, o risco é o flerte com a censura ‘do bem’ ”
No índex civilizatório se enquadram os
preconceitos, as ideias, os julgamentos e quaisquer manifestações que preconizem
discriminação e estabeleçam hierarquias entre pessoas ou grupos por suas
características. A celebração da igualdade, junto aos esforços de fazê-la
prevalecer, melhora a espécie.
Nenhum reparo, portanto, se impõe aqui ao
correto. Política, social ou culturalmente falando. Sendo contraponto ao
errado, o certo é um ideal a ser alcançado. Ao persegui-lo de modo errático, no
entanto, se incorre no risco de cair no campo contrário, o da intolerância, da
incivilidade, do desrespeito do direito de outrem, na interdição das ideias,
naquilo, enfim, que agora se chama cancelamento.
A palavra remete a comportamentos
primitivos, rudes. Cancelar quer dizer eliminar, riscar do mapa. Quando
aplicada a opiniões, significa subtrair a validade do contraditório.
E isso não como a conclusão do encadeamento de argumentos, mas em
decorrência de juízo formado não raro com base na hostilidade, na repulsa ao
que vem de lá. É estabelecida uma regra a ser seguida sem nuances e quem não
obedecer a ela leva pancada.
Assim andamos vivendo. Note-se, para
regozijo dos retrógrados com certidão passada no cartório do atraso. Desse
modo, eles encontram campo fértil para tentar invalidar o esforço evolutivo
chamando-o de autoritário. Nesse aspecto se dá a eles razão e recursos
retóricos para atrair os adeptos da defesa do mundo velho.
Essa prática patrocina a tese enganosa,
especialmente deletéria para a formação dos jovens que não viveram a ditadura
no Brasil, de que existe censura “do bem”. Não existe. A definição de censura é
clara: “Análise de trabalhos artísticos, informativos etc., com base em
critérios morais ou políticos para julgar a conveniência da liberação pública à
sua divulgação”.
Aos signatários dessa bossa nada nova,
conviria lembrar os idos de dona Solange Hernandes, a ferrabrás chefe da
Divisão de Censura e Diversões Públicas que entre 1981 e 1984 vetou e cortou em
produções artísticas tudo o que na visão dela atentava contra os bons costumes
e a política vigente.
Na visão dela e de seu entorno, bem
entendido. Por essa lógica, estava dando o seu melhor em prol da preservação
moral dos olhos, ouvidos, pensamentos e sentimentos alheios. Não dá para ser
assim.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775
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