sábado, 5 de fevereiro de 2022

Eduardo Affonso: O poder da descrença

O Globo

Em ano eleitoral, os candidatos esperam que o eleitor se comporte como se estivesse diante da televisão na hora da novela; no teatro esperando abrirem-se as cortinas; no cinema, serem apagadas as luzes —e então se dê o milagre da suspensão voluntária da descrença.

Poderiam avisar, como Orson Welles em “Verdades e mentiras”, que o que vem a seguir é sobre trapaça, fraude e mentiras, mas que o filme, em si, é baseado em fatos sólidos. Seria pelo menos meia verdade.

Suspendemos a descrença para mergulhar, sem amarras, na arte. Para nos iludir com a perspectiva e aceitar a terceira dimensão numa tela plana. Ver o personagem por trás da máscara do ator, admitir que o tempo passe noutro ritmo, que uma sugestão no palco se torne um cenário completo. Para deixar que palavras escritas se transfigurem em personagens não só de carne e osso, mas com mais alma que a maioria de nós.

É preciso descrer das evidências para transcender e penetrar no mundo superiormente interessante da arte.

Isso quando o gatilho é um Fassbinder, a nos mentir a 24 quadros por segundo. Uma Hilda Hilst, nos arrastando em seu vórtice; um Sérgio Ferro, um José Miguel Wisnik, um Antunes Filho, um Sebastião Salgado. Em ano eleitoral quem entra em cena é o marqueteiro.

A essa figura compete nos convencer da troca da realidade por um simulacro, uma versão unidimensional — e infinitamente inferior — de si mesma.

O artista nos catapulta; o marqueteiro quer porque quer nos achatar. Não é culpa dele, coitado, que está só tentando ganhar a vida honestamente nos empurrando uma fraudezinha disfarçada de boas intenções, uma mentira sincera aqui e uma semiverdade marota acolá.

Tanto quanto o artista, ele atua na chave do ilusionismo. Mas se ilusão da arte tem a ver com o lúdico (a origem etimológica é a mesma); a do marqueteiro se ancora na percepção distorcida.

Ele vai tentar nos convencer de que o candidato X defende valores cristãos, mesmo tendo sido desonesto, desleal, intolerante, insensível ao sofrimento alheio. Que é um paladino da família, em luta contra a degeneração dos costumes — enquanto tratou foi de salvar a pele da própria prole, tendo feito do seu lar um antro de falcatruas. Exibirá como resultado de seu governo uma imunização em massa que salvou milhões de vidas — escamoteando sua luta incessante contra as vacinas.

Vai suar a camisa para demonstrar o apreço democrático do candidato Y, que defende regimes de força e não esconde o desdém pela imprensa livre, pelo livre mercado, pela liberdade de pensamento. Que insistirá em repetir o que já deu errado, e que não tem como dar certo, nem nunca terá. Vai, num jogo de espelhos, fazer desaparecer o governo mais desastroso que este país já teve. (Nota mental: lembrar onde foi que li que Dilma é a pior presidente do Brasil; Bolsonaro é apenas o pior presidente da galáxia).

E ainda há o encarregado de provar que uma penca de candidatos Z quer a união em torno de uma terceira via.

A suspensão da descrença nos permite a arte, a marquetagem política e a religião. Que saibamos quando usá-la com discernimento — ou sem moderação.

 

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