O Estado de S. Paulo
O teto de gastos foi uma inovação
importante no arcabouço das chamadas regras fiscais, normas para tutelar as
contas públicas. A maior parte dos economistas, hoje, defende algum tipo de
controle sobre o gasto, mesmo que seja diferente da versão de 2016, maculada
para sempre por três emendas à Constituição em 2021. A ideia de um teto 2.0
pode ajudar neste debate.
Luc Eyraud, Xavier Debrun e coautores publicaram, em 2018, um estudo valioso sobre regras fiscais (Second-generation Fiscal Rules: Balancing Simplicity, Flexibility, and Enforceability). Em geral, eles mostram que essas normas estão correlacionadas com níveis de endividamento e déficits (receitas menos despesas) mais modestos.
Contudo, a “heterogeneidade” entre os
países é grande. Muitas vezes, a média engana. Se os braços estão dentro do
congelador e as pernas na sauna, a temperatura média do corpo estará razoável.
Isso os levou a explorar as condições a garantir regras efetivas e a estudar as
especificidades. Destaco uma conclusão do trabalho: as normas precisam estar
ancoradas a um objetivo claro, como a sustentabilidade da dívida pública.
O Brasil tem múltiplas regras em vigor.
Metas legais para o resultado primário (receitas menos despesas, sem contar os
juros da dívida); teto para os gastos públicos; regra de ouro (é proibido fazer
dívida para pagar gastos correntes); limites para a dívida pública (no caso da
União, não regulamentado, apesar de reiterado pela Emenda 109, de 2021);
limites para a despesa com pessoal; regras de acionamento de medidas de ajuste
fiscal baseadas na proporção de gastos obrigatórios; e por aí vai.
Apesar disso, a situação das contas
públicas continua ruim. Dívida pública elevada, com investimentos públicos
menores a cada ano. Sistema tributário gerador de desigualdades com carga
elevada.
Por onde começar? As regras fiscais
brasileiras estão mal calibradas, porque falta uma ancoragem a um cenário de
dívida pública traçado a partir de estimativas técnicas. Como fixar uma meta de
resultado primário de R$ 50 bilhões, R$ 150 bilhões ou R$ 250 bilhões, se não
se sabe qual a dívida aceitável, dadas as condições de crescimento econômico,
juros e inflação? Como dizer que o gasto só pode crescer pela inflação, sem
evidenciar como esse esforço fiscal colaborará para a sustentabilidade ou a
redução da dívida em relação ao PIB?
Pessoalmente, parece-me que um caminho
interessante passa pela seguinte formulação: a meta de resultado primário deve
ser fixada no valor necessário para estabilizar a dívida bruta em relação ao
PIB num horizonte de médio prazo. Isso é diferente de simplesmente limitar a dívida.
Explico o porquê.
A dívida está na casa de 80% do PIB e
deverá encerrar os próximos anos acima disso. Se o PIB voltar a crescer 2,5%,
em 2023-2024, com taxas reais de juros de 4% ao ano, seria possível estabilizar
uma dívida de 84%, digamos, com um superávit primário de cerca de 1,5% do PIB.
Para isso, então, o déficit de 2022, na
casa de 0,7% do PIB, teria de melhorar 2,2 pontos porcentuais do PIB para virar
superávit de 1,5%. Isto é, as metas de superávit primário para 2023 e 2024, sob
uma hipótese de ajuste linear, deveriam ser de 0,4% e de 1,5% do PIB, partindo
de déficit de 0,7% em 2022. Estamos falando, aqui, de um ajuste acumulado, por
meio do aumento da receita ou do corte de gasto, em torno de R$ 250 bilhões. Se
o objetivo for, em seguida, reduzir a razão dívida/pib, o esforço requerido
aumentará.
A regra mais diretamente ligada à
sustentabilidade da dívida é a meta de resultado. O teto, por sua vez, está
ligado ao tamanho do Estado. Assim, a nova regra de gastos poderia ser definida
da seguinte maneira: a despesa estará limitada pelo esforço primário fixado na
Lei de Diretrizes Orçamentárias, dadas as projeções de receitas.
Regras fiscais do Brasil estão mal
calibradas, pois falta ancoragem a um cenário de dívida traçado a partir de
estimativas técnicas
Vamo-nos entender: as receitas estimadas
(técnica e independentemente), sob premissas realistas de aumento do PIB, menos
a meta de resultado primário – ancorada na sustentabilidade da dívida –,
resultariam no nível máximo de gastos autorizado para o ano. Este seria o teto
2.0. Para ter claro, se a meta de primário for igual a R$ 50 bilhões e as
receitas forem estimadas em R$ 2 trilhões, o teto de gastos teria de ser de R$
1,950 trilhão.
Ganhos temporários de receitas não seriam
contados no mecanismo acima. Dito de outra maneira, o teto de gastos seria
função da meta de resultado primário, a ser calculada com base numa trajetória
estimada de dívida e nos objetivos políticos fixados em lei e sinalizados ao
mercado e à sociedade.
A vantagem deste novo modelo é a ancoragem
das regras, hoje soltas no mar revolto das mudanças constitucionais a toque de
caixa. A escolha pela contenção de gastos continuaria viva, como muitos, hoje,
entendem necessário, mas condicionada também à capacidade de geração consistente
de receitas.
“Food for thought”, como dizem os gringos.
Vamos ao diálogo, pois a alternativa é continuar a remendar um sistema
virtualmente positivo que, convenhamos, já nem existe mais. Ideias devem ser
debatidas e nenhuma será perfeita sem o compromisso em torno da
responsabilidade fiscal.
*Diretor-executivo e responsável pela implantação da instituição fiscal independente (IFI).
Um comentário:
Que artigo complicado!
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