O Estado de S. Paulo
Nesta matéria, cabe uma maior sintonia
brasileira com a visão dos Estados Unidos e dos países europeus
Em artigo anterior (20/11/2022), discutindo
desafios com os quais terá de lidar a política externa da presidência Lula,
destaquei que uma mudança significativa do cenário internacional está dada e
configurada pela guerra na Ucrânia e seus desdobramentos.
Esta guerra vem sendo conduzida com
determinação militar pela Rússia e resistida com valentia pela Ucrânia, com o
apoio logístico dos europeus e dos EUA, e o complemento das sanções
plurilaterais de natureza econômica de muito alcance que impuseram. Uma guerra
como esta não se circunscreve ao âmbito dos Estados em que se abriu o conflito.
Tem repercussão global, especialmente porque foi desencadeada pela deliberada
unilateral agressão militar da Rússia, uma grande potência nuclear que é membro
permanente do Conselho de Segurança da ONU.
Ela diz respeito a toda a comunidade internacional, inclusive o Brasil. Sua comoção e suas misérias fragilizam a Ucrânia. Seus estragos alcançam a todos, ainda que com vários graus de intensidade.
Putin recorreu a ela para alcançar
finalidades políticas: 1) fulminar a independência política e a integridade
territorial da Ucrânia para integrá-la num espaço vital russo; e 2) conter o
que considera uma ameaça à segurança do seu país, proveniente da expansão
geográfica da Otan no pósguerra fria.
Vale ponderar que a guerra na Ucrânia tem
uma de suas origens no colapso da União Soviética. Os países do Leste Europeu
antes sob seu controle e domínio encontraram, com sua desagregação, um espaço
próprio de liberdade e autonomia. A adesão da Europa Oriental à União Europeia
ofereceu aos países desta região inéditas possibilidades de desenvolvimento.
Neste contexto, o empenho em integrar-se na Otan de países como Bulgária,
Polônia e os Estados bálticos não teve objetivos ofensivos. Buscavam um manto
de segurança para protegê-los do risco do restabelecimento de uma arbitrária
onipresente esfera de influência russa. Por isso, veem na agressão à Ucrânia um
precedente ameaçador do espaço de sua liberdade internacional e de seus
benefícios.
A visão de segurança da Rússia, expressa
pela guerra na Ucrânia, sugere a pertinência da reflexão de Henry Kissinger
sobre o concerto europeu no século 19. A segurança absoluta almejada por
Napoleão gerou a insegurança absoluta dos demais europeus e comprometeu o
potencial de estabilização do sistema internacional da época. Daí a ponderação
kissingeriana de que uma ordem estável tem como pressuposto a segurança
relativa e a insegurança relativa de todos, uma insegurança relativa que não
comporta um questionamento global pela ascensão aos extremos de uma guerra.
A História ensina por analogia. Se Putin
almejava uma finlandização, vale dizer, uma neutralização da Otan, o que logrou
foi a incorporação da Suécia e da Finlândia – países anteriormente neutros – à
Otan. Trouxe, ao mesmo tempo, o revigoramento da Otan pelos EUA e pelos
europeus que passaram a nela identificar um indispensável ingrediente de
dissuasão, em função das novas configurações da segurança internacional.
A ação de Putin rompeu inequivocamente com o
padrão do aceitável. Inseriu a insegurança do imprevisível na dinâmica mundial.
Magnificou tensões e incertezas com a generalizada repercussão de uma guerra
que alcançou todas as instâncias das relações internacionais.
Cabe, assim, seguir a lição de Ruy Barbosa
sobre a orientação pacificadora da justiça internacional. “Entre os que
destroem a lei e os que a observam, não há neutralidade admissível.
Neutralidade não quer dizer impassibilidade, quer dizer imparcialidade; e não
há imparcialidade entre o Direito e a injustiça.” Assim, quando entre ele e ela
existem “normas escritas, que as definem e diferenciam” – como é hoje o que
prescreve a Carta da ONU sobre a integridade territorial e a independência
política de qualquer Estado –, pugnar pela sua observância “não é quebrar a
neutralidade, é praticá-la”.
O Brasil é um país de escala continental.
Integra o seu capital diplomático o viver em paz com seus dez vizinhos há 150
anos, com fronteiras juridicamente consolidadas e sem tensões de contenciosos
territoriais. Contrasta com outros países do Brics, como China, Índia e a
própria Rússia, que, por terem contenciosos territoriais, têm sensibilidades
distintas do Brasil.
Por isso o que quero, em conclusão,
sublinhar é que nesta matéria cabe uma maior sintonia brasileira com a visão
dos EUA e dos países europeus. Vale, evidentemente, reconhecer diferenças,
derivadas da especificidade da inserção internacional do Brasil, e afirmar ao
mesmo tempo a importância do Atlântico Sul como uma zona de paz e segurança e
de não proliferação nuclear. É importante, também, levar em conta uma
reciprocidade difusa de afinidades. Entre elas, a ênfase compartilhada na
agenda ambiental e o reconhecimento de que foram os americanos e os europeus
que mais se destacaram no plano internacional na defesa da legitimidade do
processo eleitoral e do respeito ao Estado de Direito que salvaguardaram o
triunfo eleitoral de Lula.
Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais
da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)
Um comentário:
Celso Lafer.
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