Valor Econômico
Livro “Biografia do Abismo” constata que divisão política no Brasil atingiu todas as esferas da sociedade
A opinião pública brasileira calcificou-se em
uma polarização entre direita e esquerda que ultrapassou em muito a questão
eleitoral. Não existe mais o Brasil, existe o “Lulanaro”, dois universos
completamente diferentes, um dos adeptos do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, outro do ex-presidente Jair Bolsonaro. Estar em uma esfera ou outra
significa escolhas diferentes de estética, educação, consumo, lazer e até
sentimentais e familiares. A divisão ultrapassou o cenário político e invadiu o
cotidiano.
Essa é a conclusão central do livro “Biografia do Abismo”, do jornalista Thomas Traumann e do cientista social Felipe Nunes, da empresa de pesquisas Quaest. O nome do livro é uma alusão a uma frase famosa do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que alertou sobre o risco da radicalização: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne também um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo olha de volta para você”.
O livro é um estudo sobre as eleições de
2022, “uma história de ódio, amores e medos”, como os autores as definem. Não
se limita a isso, entretanto. Na autópsia da disputa do ano passado, o
principal traço é o aprofundamento de uma divisão já existente e que persistiu
depois do pleito, como ficou evidente depois dos atos golpistas de 8 de janeiro
em Brasília.
Na palavra dos autores, “da mesma forma que a
identidade do torcedor não acaba com o fim da partida dentro de campo, vencendo
ou perdendo, a identidade do eleitor no país de Lulanaro não se encerra com o
fim da eleição”.
Esse postulado dos autores leva a diversas
conclusões. Uma delas é a que as esferas se tornam relativamente impermeáveis a
influências externas. Os dois grandes blocos só aceitam receber informações que
confirmem seus pontos de vista anteriores e por isso tendem a uma relativa
estabilidade.
O resultado eleitoral de 2022, em grande
parte, reproduziu em cada município o de eleições anteriores. A variação da
votação de Lula em 2022 em relação à de Fernando Haddad em 2018, por exemplo,
foi apenas de 2 pontos percentuais em média. “Mesmo com várias crises,
Bolsonaro foi capaz de manter boa parte da base eleitoral que arregimentou em
2018. Ao mesmo tempo, Lula manteve os grupos da base eleitoral petista e buscou
recuperar parte do eleitorado que havia abandonado o PT no ciclo anterior”,
dizem.
Disputa do ano passado mostra aprofundamento
de uma divisão já existente
Outra conclusão é que paradoxalmente a
calcificação torna as eleições ainda mais imprevisíveis. Como as duas bolhas
são aproximadamente do mesmo tamanho, mesmo grupos muito minoritários podem se
tornar decisivos, porque oscilam entre um grupo e outro. É o caso do que eles
denominam de “liberais sociais”, equivalente em 2022 aos eleitores da hoje
ministra do Planejamento Simone Tebet (MDB), que teve apenas 3% dos votos. Não
foi o Nordeste, reduto lulista, que decidiu a eleição. O que a decidiu foi a
captura por Lula de uma franja do eleitorado do Sudeste, reduto de Bolsonaro.
O livro ancora-se na base de dados das
pesquisas de intenção de voto feitas pela Quaest sob encomenda da Genial
Investimentos ao longo de 2021 e 2022, durante o processo eleitoral, e
pesquisas de avaliação de governo feitas este ano. O acervo é composto por 27
rodadas de pesquisas quantitativas e de relatórios de 150 grupos de discussão.
As pesquisas mostram um grau de radicalização
crescente e chocante: se em dezembro de 2021 9% dos pesquisados se sentiriam
mal caso um filho se casasse com alguém de perfil ideológico oposto, este
percentual sobe para um terço um ano depois. A quantidade de consumidores que
deixam de consumir determinada marca por motivos políticos passou de 1% para
13%. O percentual de pesquisados que mudaria o filho de escola caso em função
de posições políticas mudou de 7% para 25% entre dezembro de 2022 e junho de 2023.
Dos 17% de pesquisados que disseram ter rompido relações pessoais em função da
campanha, 75% afirmaram que não se arrependiam.
O último capítulo busca ser propositivo
diante do cenário sombrio. “Tem saída?”, os autores perguntam no título do
epílogo. A resposta que eles dão é sim, e convidam os leitores a partirem da
premissa que tanto o bolsonarismo quanto o lulismo “ são respostas políticas
para problemas reais”. Portanto legítimas. A partir dessa premissa, os autores
propõem que se adote uma espécie de “convenção de Genebra” em relação à disputa
política. Ou seja, impor “limites claros de até onde vai a opinião pública e
onde começa a intolerância”. Não respondem como isso será possível.
Um comentário:
Uma pena essa rachadura ideológica.
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