domingo, 18 de agosto de 2024

Míriam Leitão - O insensato voo de Ícaro

O Globo

Flávio Dino usa a mitologia grega para mostrar que é risco à democracia o avanço do Congresso sobre poderes do executivo

A última tempestade que se abateu sobre os poderes da República não veio de repente. O excesso de poder do Congresso sobre a execução do Orçamento da União vem se agravando. Em junho, o ministro Flávio Dino avisou aos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, que era preciso corrigir o processo de liberação de emendas para cumprir a decisão do Supremo que, em dezembro de 2022, acabou com o orçamento secreto. Nada foi feito. O fato é que o Congresso contornou e desrespeitou a decisão do STF. Acabou com a emenda de relator e recriou a mesma forma nebulosa e pulverizada de distribuir dinheiro público nas emendas de comissão.

O problema não é só político. É econômico. Ajuste fiscal não é apenas cortar gastos, mas tornar a despesa mais eficiente. A multiplicação de escaninhos e o aumento do volume das emendas parlamentares afetam a governabilidade e também a governança. Cada poder tem a sua atribuição. O Congresso aprova o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e o Orçamento Geral da União. É bastante poder. Decide o planejamento de longo prazo do gasto público, os critérios com os quais será feito o Orçamento e o próprio Orçamento. Mas quem executa é o executivo.

Não é a decisão do ministro Flávio Dino que afeta a harmonia entre os poderes, mas a ganância com que o parlamento avançou sobre pedaços do gasto público e a forma como está gastando. O que afeta as instituições não é a ordem do Supremo de mandar parar tudo e fazer o “diálogo institucional”, mas a maneira de distribuir o dinheiro do orçamento e a decisão da Câmara de não votar mais nada. O nome é chantagem. É o Congresso dizendo: se não fizer o que eu quero eu nada decido.

O ministro Flávio Dino, respaldado pelos colegas, mandou suspender a execução das emendas até que se chegue a um formato que respeite a Constituição. No voto, ele lembrou Ícaro, da mitologia grega, que se afasta do mar e perigosamente se aproxima do sol.

Para entender a imagem é preciso historiar os momentos desse voo. Em 2015, no meio da crise do governo Dilma, o Congresso aprovou a PEC 86 criando a emenda impositiva. O governo fica obrigado a liberar as emendas individuais dos parlamentares. Em junho de 2019, veio a PEC 100 que tornou também obrigatória as emendas de bancada dos estados. Em dezembro de 2019, a PEC 105 permitiu que as emendas parlamentares não tivessem relação alguma com projeto ou atividade governamental. Em dezembro de 2022, o Congresso aumentou o valor do total que controlava e o excluiu dos limites de despesa. A cada decisão, Ícaro fica mais perto do sol.

Vejam os anos das decisões. Em 2015, com o executivo fraco pela crise econômica que elevou a inflação e derrubou o PIB e a popularidade da presidente Dilma. Entre 2019 e 2022, em um governo que não queria negociar com o Congresso, preferia comprá-lo. Não interessava a Jair Bolsonaro o bom funcionamento das instituições, seu projeto era desmontá-las. Nesse caminho, entre 2015 e 2022, o país foi se aproximando do perigo. Cada vez mais dinheiro na mão do Congresso, cada vez mais impositiva a liberação, cada vez mais obscuras e pulverizadas as decisões de gasto.

O STF então, em dezembro de 2022, proibiu as emendas secretas. Disse que a Constituição exige transparência. Que se saiba quem ordenou a despesa, para onde foi o dinheiro e com que objetivo. O Congresso fez de conta que cumpriu. Acabou com as emendas de relator e recriou o mecanismo nas emendas de comissão. Quem na comissão mandou gastar? Ninguém sabe, muitas vezes nem mesmo os membros da comissão. É Ícaro em seu voo insensato.

Como é nos outros países? A OCDE responde. Em 14 países, o Congresso emendou o orçamento em valores abaixo de 0,01% . Dez países, abaixo de 2%. Estados Unidos acima disso, 2,4%. No Brasil, 24,2% de toda a despesa discricionária, que o governo pode usar livremente para os seus investimentos, é o Congresso que decide. E de que forma decide? No método, “quero, posso, mando”, disse Dino no voto, em recado claro a Arthur Lira. Ao pulverizar esse gasto, dificulta-se também a fiscalização. O que houve com Ícaro? Ele se aproxima demais do sol, o calor derrete a cera de suas asas, ele cai no mar e morre. Defender a democracia brasileira não é apenas enfrentar golpistas que atacam poderes, é também corrigir os descaminhos no uso do dinheiro que é de todos nós.

3 comentários:

Anônimo disse...

Miriam Leitão está certa.

Daniel disse...

O anônimo também está certo!

ADEMAR AMANCIO disse...

Exatamente.