Folha de S. Paulo
Ex-presidente seguiu manual do autocrata
contemporâneo e atuou metodicamente para criar crise institucional
[RESUMO] Autor refuta opinião de não
houve crise institucional no governo Bolsonaro e que seriam exagerados os
alertas de ameaças à democracia. Para ele, Estado de Direito só resistiu porque
algumas instituições não normalizaram posturas aberrantes do ex-presidente,
mas, a longo prazo, seriam incapazes de impor limites a governos autoritários
se não houver empenho de eleitores e aperfeiçoamento de medidas de proteção
constitucional.
Legislativo forte, fragmentação partidária,
federalismo e Judiciário independente explicam o fracasso das investidas
autoritárias do governo Bolsonaro. Esta é a tese do livro "Por
que a Democracia Brasileira Não Morreu?" (Companhia das Letras), de Marcus
André Melo, colunista da Folha, e Carlos Pereira.
Os respeitados cientistas políticos avaliam
que o multipartidarismo fragmentado funciona como "antígeno institucional
endógeno contra iniciativas extremistas". Apesar de "retumbantes
fracassos" no âmbito das políticas públicas, defendem os autores, não
houve crise institucional, e os
analistas "exageraram" as ameaças à democracia, que "careciam de
credibilidade".
Eles afirmam que "Bolsonaro não possuía
os meios institucionais nem obteve apoio político necessário para suportar os
custos associados à implementação de retrocessos democráticos". O
ex-presidente submeteu-se ao jogo político, sendo "domesticado" pelas
instituições.
Em posfácio do livro, o professor Barry Ames
crava com convicção: "os sonhos autoritários de Bolsonaro nunca tiveram a
menor chance de se tornar realidade"; as instituições "sobreviveriam
a um segundo mandato", que "teria sido ainda mais ineficaz do que o
primeiro".
O livro faz instigante análise do funcionamento do sistema político diante das turbulências da Lava Jato, do impeachment de Dilma e de Lula 3, mas não é dada a devida dimensão ao estrago causado pela Presidência de Jair Bolsonaro, que não só constituiu um desgoverno do ponto de vista programático como impôs o mais rigoroso teste à arquitetura institucional da Constituição de 1988.
Em entrevista à Folha em 2021, o ministro
Edson Fachin elencou sintomas de "corrupção da democracia",
reveladores de um "processo desconstituinte" em curso no país:
remilitarização do governo civil, intimidações dos Poderes, ataques ao processo
eleitoral e à liberdade de expressão, incentivo às armas e à violência,
naturalização da corrupção.
O
ex-presidente seguiu à risca o manual autocrático contemporâneo. Apostou
na ebulição permanente e na polarização para mobilizar apoio popular e testar
os limites da democracia. Fustigou oponentes, incitou as Forças Armadas contra
a mídia, o sistema eleitoral e o Judiciário, convertido em alvo principal por
ser a instância que administra as eleições.
Não foram devaneios de um postulante a
ditador. Havia método nas ameaças, que se tornaram concretas diante de
vulnerabilidades demonstradas por certos atores. Instituições atuaram diante
dos ataques autoritários, mas de forma assimétrica.
O Congresso cultivou relação parasitária com
o governo. Manteve-o vivo, servindo de escudo contra impeachment, e abocanhou o
Orçamento. A maioria dos parlamentares não endossou projetos da extrema direita
ideológica, como a
PEC do Voto Impresso, mas foi conivente com desmandos
e desatinos na saúde, na educação, no meio ambiente, na política
externa.
Bolsonaro não foi domesticado pelas
instituições, mas normalizado. Ideias hostis
a pilares liberais, vulgaridades, violações às regras de civilidade
política são toleradas, ou até enaltecidas, por amplos segmentos da classe
política e da sociedade. Também por aqui, as fronteiras entre centro, direita e
extrema direita tornam-se porosas.
Sintoma mais revelador da dimensão
institucional da crise foi a violação da função constitucional das Forças
Armadas. O envolvimento dos militares na política crescia desde Dilma e Temer,
com operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e intervenção federal no Rio
de Janeiro (vale a leitura do livro "Dano Colateral", Natalia Viana).
A saída dos quartéis para a arena política se
radicaliza com a instalação da Comissão Nacional da Verdade e a adesão de
integrantes do alto escalão à campanha presidencial de Bolsonaro. Com sua
vitória, a militarização da política chega ao ápice e passa a constituir
problema institucional relevante, com aumento exponencial da presença de
militares no governo.
Investigações demonstram articulação para um
golpe de Estado, com ciência ou participação de integrantes da alta hierarquia
militar. Enquanto os chefes militares dos EUA foram taxativos na afirmação do
dever de obediência ao poder civil e à Constituição após a
insurreição de 6 de janeiro de 2021, os militares brasileiros
atuaram de forma errática antes, durante e
após o 8 de janeiro de 2023.
E mais —houve apoio ou silêncio cúmplice da
alta hierarquia diante de manifestações golpistas em frente a quartéis após as
eleições de 2022.
O processo de corrosão institucional
alastrou-se por todas as esferas. Investigações indicam ingerência em órgãos
como Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), Polícia Federal e
Receita Federal, em benefício do presidente, seus familiares e aliados. Há
contundentes indícios de espionagens ilegais realizadas pela Agência
Brasileira de Inteligência ("Abin paralela"). A Polícia
Rodoviária Federal atuou como milícia política no dia do segundo turno das
eleições.
Outra anomalia institucional grave foi a
subserviência do procurador-geral da República, Augusto Aras,
ao presidente. Diante da blindagem oferecida pela PGR e pelo
Congresso, recaiu ao STF e ao TSE a responsabilidade maior de defesa da
democracia, especialmente
na investigação criminal de atos antidemocráticos e de disseminação de
informações falsas contra a integridade do sistema eleitoral.
Populistas autoritários, que ascendem ao
poder pelo voto, fazem uso das instituições para moldá-las às suas ambições,
corroendo a democracia por dentro. Quando detêm maioria parlamentar, alteram a
Constituição, reformam leis de forma a neutralizar freios impostos pelo regime
democrático e assegurar a permanência no poder.
No caso brasileiro, diante de entraves no
Congresso, da resistência judicial, da vigilância da imprensa, o governo
implementou um projeto de centralização de poder, valendo-se, com frequência,
de decretos ou de atos administrativos para subverter leis ou desconstruir
políticas públicas.
Em pesquisa pela FGV Direito SP, Oscar
Vilhena Vieira, Rubens Glezer e Ana Laura Pereira Barbosa fizeram radiografia
desse modus operandi, definido como "infralegalismo autoritário":
desmantelamento de políticas (controle de armas); ingerência na autonomia de
órgãos públicos (Ibama, ICMBio, Ipea); violação de regras de transparência de
atos administrativos.
Não é possível afirmar que a reeleição
levaria à morte da democracia, mas o abalo seria grande. É realista
pensar em escalada autoritária no segundo mandato, com maior protagonismo
militar, submissão crescente das instâncias de controle (PF, TCU, AGU, CGU),
maior alinhamento do Congresso às pautas do bolsonarismo raiz, degradação de
direitos de grupos vulneráveis e desmantelamento de políticas públicas de raiz
constitucional.
No âmbito do Judiciário, haveria modificação
em curto prazo na composição dos TRFs, STJ, TSE e STF, cujos integrantes
dependem de nomeação presidencial. O clima
anti-Supremo no Congresso estaria mais acirrado, sendo razoável pensar na
hipótese de impeachment de ministros ou de emendas com aumento do número de
vagas em tribunais superiores.
As instituições estariam sendo conduzidas por
indivíduos que se mostraram desleais à democracia: Anderson
Torres (ex-ministro da Justiça e Segurança Pública do
Brasil), Augusto Aras, Silvinei
Vasques (ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal), o
tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Jair
Bolsonaro), Alexandre
Ramagem (ex-diretor-geral da Abin), o general
Augusto Heleno (ex-chefe do GSI, o Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência), o
general Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil e da Defesa).
E viriam novos oportunistas, que sucumbiriam
às benesses do poder. O equilíbrio do federalismo estaria fragilizado por
governadores aliados em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e em São Paulo,
desatados do paradoxo de "bolsonaristas moderados".
A constatação de vulnerabilidade da
democracia é importante para que possam ser projetados aperfeiçoamentos
institucionais voltados à proteção contra usurpações vindas do Estado e da
sociedade.
Algumas propostas relevantes: reestruturação
e desmilitarização dos serviços de inteligência; imposição de limites à
interferência militar na política, como restrição de exercício de cargo
governamental e de candidatura por militar da ativa; regulamentação das redes
sociais contra desinformação, discurso de ódio e antidemocrático; persecução de
crimes contra a democracia; revisão pelo conselho nacional do MPF de pedido de
arquivamento de inquérito pelo PGR; mecanismo de controle do poder do
presidente da Câmara no processamento de pedido de impeachment.
O paradigma constitucional
alemão da "democracia defensiva" ("wehrhafte Demokratie") é
uma referência para esse debate. Assegurar a proteção do Estado de
Direito dentro das regras do Estado de Direito é o difícil equilíbrio que se
impõe.
A democracia brasileira não sucumbiu porque
algumas instituições, com respaldo e sob pressão de parte da sociedade, não
normalizaram o que foi aberrante, compreenderam a gravidade das ameaças e
adotaram postura defensiva em momentos chave.
A longo prazo, contudo, as instituições serão
incapazes de impor limites contra governantes autoritários se não houver
empenho de eleitores em mantê-los distantes do poder pelo voto.
O aprendizado deve servir de alerta para a
necessidade de convergências políticas, não somente em momentos eleitorais,
entre lideranças de centro, de direita e de esquerda que sejam leais às regras
do jogo democrático. Uma
manifestação de apoio à democracia na Venezuela pelo governo brasileiro seria
um passo em tal sentido.
*Advogado criminal, é professor-fundador da FGV Direito SP
4 comentários:
Análise BRILHANTE, muito bem argumentada e apresentada! TEXTO PERFEITO!! Parabéns ao autor, e ao blog por divulgar o magnífico trabalho!
Perfeito !
Realmente excepcional, falou tudo!
Muito bom o artigo!
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