Folha de S. Paulo
Ideais precisam se curvar aos direitos
individuais que fundam a democracia liberal
"Os fins justificam os meios" é um
argumento perigoso de que todo democrata deve desconfiar. Afinal, não há regime
totalitário que não tenha se respaldado nessa máxima.
Revolução Francesa, URSS, o Terceiro Reich. Todos partiam da perspectiva de que a
humanidade é agente da história e que, para concretizar um projeto idílico de
organização social, qualquer ação é aceitável.
A consequência é a desumanização de pessoas em prol de uma ideia. Por isso tal
idealismo predispõe à infração de direitos individuais duramente conquistados
ao longo de séculos. Na última semana, vimos dois casos de meios justificados
por fins.
Lula disse
que a Venezuela não
é uma ditadura, mas um regime desagradável, e cogitou um novo pleito como solução
para a fraude eleitoral perpetrada por Nicolás
Maduro.
O fim da liberdade de imprensa e de expressão, prisão, tortura, mortes e
migração em massa de venezuelanos não são suficientes para conter a marcha da
história que chegará a um novo e melhor estágio social imaginado por parte da
esquerda.
Do mesmo modo, os fins do interminável inquérito das fake news no STF apoiam
o desrespeito a ritos do Judiciário.
Para proteger a democracia, a expansão sem transparência do poder de polícia
sobre a população, promovida pelo ministro Alexandre de
Moraes, torna-se aceitável.
O apego à ideia é tão ferrenho que até a imprensa —por cumprir seu papel de
fiscal do poder público, ao revelar atos temerários como usar criatividade na
produção de provas contra uma revista— foi acusada de incitar ataques à
democracia.
Mas as democracias liberais se sustentam em valores que traçam uma linha clara
entre o Estado e os cidadãos. Trata-se de mecanismo de autopreservação: o
Estado não pode invadir o espaço dos direitos individuais, sob risco de
descambar no autoritarismo. Qualquer meta pretendida deve respeitar essa
demarcação.
Não importam os fins. Se, para alcançá-los, princípios democráticos são
solapados pelo caminho, o destino só pode ser a tirania.
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