O significado da disputa entre Kamala e Trump
O Globo
A eleição americana definirá o futuro não
apenas da maior potência militar e econômica, mas de todo o planeta
Kamala Harris,
vice-presidente dos Estados
Unidos e candidata democrata à Presidência, fez o discurso
culminante de sua campanha eleitoral na semana passada, no mesmo local em
Washington de onde seu rival republicano, o ex-presidente Donald Trump,
incitou a multidão que invadiu o Capitólio tentando reverter o resultado das
eleições no fatídico 6 de janeiro de 2021. “Será provavelmente o voto mais
importante que vocês jamais darão”, disse ela. “Esta eleição é mais que uma
escolha entre dois partidos e dois candidatos diferentes. É uma escolha a
respeito de o país ser enraizado na liberdade para todo americano ou governado
pelo caos e pela divisão.”
É fato. Poucas eleições na História foram tão determinantes para o futuro dos Estados Unidos. Nesta, não está em jogo apenas a maior potência econômica e militar da Terra, mas o planeta todo. Kamala e Trump representam visões antagônicas em temas críticos como mudanças climáticas, criminalidade, direitos de minorias, aborto ou imigração. E as pesquisas não permitem arriscar quem vencerá. Em razão do convoluto sistema eleitoral, a decisão estará nas mãos de um punhado de eleitores de poucos distritos decisivos em seis ou sete estados. Para todos os efeitos, os dois têm chances equivalentes.
Mas isso não significa que sejam
equivalentes. As palavras de Kamala em Washington são a prova de que o motor da
eleição não é nenhum dos temas críticos que polarizam o eleitorado. Tampouco a
reviravolta na campanha depois da desistência do presidente Joe Biden,
cujo declínio cognitivo ficou evidente. O que está em jogo nas urnas é o futuro
da democracia no país, e Trump, pelo que diz e prega, é quem traz os maiores
riscos.
A imprensa tem definido os temores nos termos
mais duros. “Difícil imaginar candidato mais indigno”, diz o New York Times.
“Temperamentalmente inepto a um papel que requer as mesmas qualidades —
sabedoria, honestidade, empatia, coragem, contenção, humildade, disciplina —
que mais lhe faltam.” Para a New Yorker, “os Estados Unidos simplesmente não
podem suportar mais quatro anos de Trump”. A Atlantic, que em dois séculos só
empenhara apoio a Abraham Lincoln e Lyndon Johnson, pela terceira vez declarou
voto contra Trump, descrevendo-o como “um dos candidatos pessoalmente mais
malignos e politicamente mais perigosos na História americana”. Mais sóbria, a
britânica The Economist afirmou que “ao tornar Trump líder do mundo livre, os
americanos fariam uma aposta de risco com a economia, o domínio da lei e a paz
internacional”. Mesmo o Washington Post, que se recusou a apoiar candidato,
classificou Trump como vulgar, afirmando que ele “já provocou danos severos à
política americana ao corroer o discurso público e torná-lo mais grosseiro”.
Metade do país, porém, pretende votar em
Trump. E é preciso entender a motivação desses eleitores. Há uma preocupação
legítima com a imigração ilegal, que só tem crescido em razão da dificuldade do
governo Biden de controlá-la. Como vice, Kamala foi encarregada de lidar com o
problema — e fracassou. Na cena global, o governo Trump deixou como legado os
Acordos de Abraão, última esperança de paz no Oriente Médio antes do atual
conflito, e levou aliados da Otan a investir mais na própria defesa, aliviando
a carga dos americanos. Seu temperamento errático e imprevisível inspirava
temor em adversários como a China. É verdade que, dadas suas simpatias por
Vladimir Putin, ele não teria pudores em abandonar a Ucrânia à própria sorte ou
em sabotar a aliança atlântica. Mas nada disso tem efeito imediato para o
eleitor médio.
Em contrapartida, suas propostas populistas
para a economia — em especial as tarifas de 20% a 500% sobre importações e os
cortes generosos de impostos — exercem grande poder de atração. São soluções
fáceis de entender, apreciadas pelos beneficiários do protecionismo ou das
isenções, embora resultem em déficit público fora de controle, pressões
inflacionárias, mais juros e menos crescimento. Por fim, Trump continua a
representar o espírito de revanche dos grupos que, com a globalização, se viram
alijados de representatividade e ficaram para trás. Para estes, o fato de ter
sofrido dois impeachments, sido condenado criminalmente e ainda enfrentar
processos na Justiça só funciona como evidência de que é perseguido.
Mesmo os republicanos que reconhecem as
deficiências na personalidade e no caráter de Trump costumam dizer que ele já
governou o país durante quatro anos sem que houvesse danos irreparáveis. “O
melhor argumento que se pode fazer em favor do primeiro mandato de Trump é que
havia uma tensão construtiva entre sua desinibição e as restrições da
burocracia e das instituições”, diz o colunista político Ezra Klein. “O que
mudou, mais que Trump, são as pessoas e instituições ao redor dele.”
Apenas metade dos 42 ex-integrantes de seu
gabinete apoia a volta de Trump ao poder. Nomes de relevo que trabalharam com
ele — dois ex-secretários da Defesa, um ex-secretário de Estado, dois
ex-assessores para Segurança Nacional, os ex-chefes da Casa Civil e de
Estado-Maior, além do próprio ex-vice-presidente Mike Pence — não se cansam de
repetir que o consideram uma ameaça. Trump aparelhou o Partido Republicano com
acólitos fiéis e tem planos de fazer o mesmo com o Estado. Para Klein, ele está
cercado de sicofantas, incapazes de lhe impor a resistência e o controle que
evitaram o pior em seu primeiro mandato: “Não apenas o homem é inepto; as
pessoas e instituições que o cercam também são”.
O maior risco da eleição de Trump é uma crise
sem precedentes na democracia mais longeva do mundo — o 6 de Janeiro é apenas
um prelúdio do que poderia acontecer —, com consequências imprevisíveis para a
paz global e o futuro do planeta Terra. Não menos que isso.
Retrocesso na reforma da Previdência é
insustentável
Folha de S. Paulo
Dispositivos aprovados em 2019 por amplo
entendimento político estão ameaçados por pressões corporativistas no STF
Aprovada em 2019 após debates que se
arrastaram por décadas, a reforma da
Previdência Social resultou de um amplo entendimento político
para alterar a Constituição e tornar mais sustentável o sistema nacional de
aposentadorias. Agora, cinco anos depois, os frutos de todo esse trabalho estão
sob ameaça corporativista no Supremo Tribunal Federal.
Está por ser finalizado o julgamento conjunto
de 13 ações contra dispositivos da reforma, ajuizadas sobretudo por entidades
da elite dos servidores públicos, com
perda potencial de astronômicos R$ 497,9 bilhões em dez anos
para as já combalidas finanças do Estado brasileiro.
A análise havia sido interrompida em junho
por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes e
será retomada pelo plenário. Já votaram 10 dos 11 magistrados, e há maioria
para a derrubada de três pontos fundamentais da reforma —os votos ainda podem
ser mudados até o fim do julgamento.
Um dos casos é a previsão de contribuição
extraordinária de servidores ativos e inativos, que pode incidir sobre
vencimentos acima de um salário mínimo.
Outro é a diferenciação do cálculo do valor
das aposentadorias de mulheres entre os regimes público e privado. A reforma
previu critério menos vantajoso no caso das servidoras, mas a
O principal risco diz respeito à
progressividade da alíquota de contribuição do funcionalismo federal. Pela
reforma, a cobrança varia de 7,5%, para vencimentos de um salário mínimo, a
22%, para remunerações acima de R$ 52 mil mensais. Nesse tema, há empate de 5 a
5, estando pendente o voto de Gilmar Mendes.
Até 2019, a alíquota era de 11%, patamar
insuficiente para custear o sistema público, que é altamente deficitário e
ainda oferece condições desiguais ante os trabalhadores do setor privado. A
progressividade da cobrança também passou a valer para o regime geral, com
taxas diferentes.
O impacto da reversão desse dispositivo nas
contas da União pode chegar a R$ 300 bilhões em dez anos, um retrocesso grave
que eliminaria quase 40% da economia obtida com a reforma. Espera-se que o STF
tenha em mente que a progressividade é um princípio correto, que se assenta na
busca por maior equidade social. Não há controvérsia moral ou jurídica, por
exemplo, em torno de sua aplicação na cobrança do Imposto de Renda.
É crucial, sobretudo, que os magistrados
—eles próprios servidores de elite— mantenham o interesse público acima de
afinidades corporativistas.
Mesmo após a reforma, o sistema de
aposentadorias continua muito deficitário. Com o envelhecimento
populacional, serão
necessários ajustes contínuos, a incluir também os militares, e
retrocessos só elevarão a necessidade de sacrifícios no futuro.
Tabelar preços de livros é caminho errado
Folha de S. Paulo
Sob pretexto de estimular pluralidade de
livrarias e a leitura, Lei Cortez prejudica consumidor ao limitar descontos
Quando o Estado institui normas
protecionistas para um setor do mercado, em geral acaba prejudicando a livre
concorrência e, com isso, os consumidores. O setor público brasileiro
historicamente tende a adotar tais medidas, que sempre são difíceis de reverter.
O projeto de lei 49/2015, que cria a Política
Nacional do Livro e Regulação de Preços e foi aprovado
na terça-feira (29) no Senado,
caminha nesse mesmo sentido. A Câmara ainda vai analisá-lo.
Chamado de Lei Cortez, em homenagem ao
livreiro José Xavier Cortez, que morreu em 2021 e apoiava a proposta, o texto
impede que livros, inclusive os digitais, sejam vendidos com descontos
superiores a 10% sobre o preço sugerido pelas editoras nos 12 meses após o
lançamento; na segunda edição, o tabelamento vale por seis meses, e somente nas
seguintes ele é extinto.
Estarão isentos da regulação os livros de
colecionadores (em edições limitadas com no máximo cem exemplares), obras
raras, antigas, usadas ou esgotadas e as destinadas a instituições e entidades
com subsídio público.
Apoiadores afirmam que o diploma é necessário
para ampliar o acesso aos livros e incentivar a leitura por meio da garantia de
diversidade de livrarias no país (no texto da lei, "pluralidade de pontos de venda").
Trata-se de uma resposta aos descontos, considerados
abusivos pelo mercado editorial brasileiro, oferecidos pela gigante
varejista online do setor, a americana Amazon.
Na prática, o resultado é impedir que o
consumidor tenha acesso a produtos mais baratos, o que está longe de estimular
a leitura —em um país no qual, segundo pesquisa de 2023 encomendada pela Câmara
Brasileira do Livro, 84% da população acima dos 18 anos não havia comprado
nenhum livro nos últimos 12 meses.
Modelos de negócios estão em constante e
acelerada mudança. Deve-se lembrar que as pequenas livrarias de bairro sofreram
com o surgimento das megastores, que, além de livros, vendiam CDs, DVDs e
eletrônicos. Estas, por sua vez, fecharam as portas, com o incremento de vendas
online e o desenvolvimento de plataformas de streaming.
A Lei Cortez também pode minar o estímulo à
criatividade e à inovação, já que até mesmo escritores que usam o meio digital
para se inserir no mercado literário também não poderão oferecer descontos
acima de 10%.
Livrarias precisam se adaptar às mudanças
culturais e tecnológicas sem prejudicar consumidores e autores. Quem foge à
concorrência dificilmente deixa de depender da proteção estatal.
O que une PL e PT
O Estado de S. Paulo
Lulopetistas e bolsonaristas se juntam no
apoio a Hugo Motta, candidato de Lira para o comando da Câmara. Mas não nos
enganemos: a união nada tem a ver com a pacificação do País
O deputado federal Hugo Motta
(Republicanos-PB) conseguiu uma dessas façanhas que só Brasília é capaz de
produzir: no avanço de sua candidatura à presidência da Câmara dos Deputados,
uniu em torno de si o apoio do PT de Lula da Silva e do PL de Jair Bolsonaro,
os dois partidos que, malgrado as vicissitudes petistas e a desidratação do
“mito”, ainda correspondem às principais forças eleitorais em nível nacional. O
líder do Republicanos conseguiu a declaração de apoio do MDB, do PP e do
Podemos, e outros partidos de esquerda devem seguir o apoio petista. E mais:
rifado pela cúpula do União Brasil, Elmar Nascimento – antes o candidato
preferido do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que agora apoia Motta –
anunciou sua desistência.
Tamanha variedade partidária ao seu redor já
seria um feito notável, mas a eloquência maior aparece, sobretudo, na união dos
contrários – o casamento improvável entre lulopetistas e bolsonaristas. Como se
sabe, esses dois grupos costumam trabalhar na lógica inversa à pacificação e à
união do País, sendo de interesse de ambos que o outro ocupe espaço simbólico
na cabeça do eleitor, com sentimentos exacerbados pelo medo e pela rejeição
mútua. Seus dois líderes continuamente apertam os gatilhos que tornam simplesmente
impossível a convivência com o lado oposto. Diante de preferências e visões de
mundo radicalmente diferentes e intolerantes entre si, é de espantar que, de
uma hora para outra, estejam unidos num projeto representado pela candidatura
de Motta.
Antes fosse uma demonstração de esforço pela
desejável construção de agendas consensuais de utilidade ao Brasil. Ou a
admissão da inevitabilidade da convivência pacífica, em nome do interesse
público. Essa união de contrários, no entanto, tem muito mais a ver com a
lógica das disputas pela Mesa Diretora da Câmara e seus códigos de preservação
de poder, benesses e recursos. A busca por candidatos de consenso é também
parte do cálculo político baseado na memória de disputas fratricidas que
resultaram em instabilidades históricas para o governo de ocasião, como nas
eleições que deram a vitória, em 2005, ao folclórico Severino Cavalcanti
(PP-PE), numa tremenda humilhação ao então presidente Lula, e, em 2015, a
Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o algoz da então presidente Dilma Rousseff. Em
contrapartida, presidentes aliados ao Executivo se tornaram fiadores da
estabilidade – casos de Luiz Eduardo Magalhães (PFL) e de Aécio Neves (PSDB)
durante os mandatos de Fernando Henrique Cardoso.
O “consenso” entre PT e PL mais parece também
uma demonstração de onde se encontra o verdadeiro centro gravitacional dos
Poderes da República. Está no Congresso, e particularmente na Câmara, a grande
força política do momento – e não é de hoje. Com uma Casa fortalecida pelos
poderes orçamentários adquiridos nos últimos anos, bancadas indóceis e grupos
partidários que se unem em blocos para obter dividendos mais robustos, as
maiorias parlamentares se tornaram mais instáveis e a governabilidade
revelou-se mais penosa para o Executivo. Bolsonaro chegou à Presidência sob o
manto da antipolítica, mas precisou se sustentar com o Centrão, numa aliança
entre o PL, o PP e o Republicanos. Há quase dois anos, Lula se aflige diante da
natureza instável e fragmentada nas relações com o Congresso e a ausência de
sabedoria política para superá-la. A hipertrofia do poder foi sentida no STF,
que passou a imiscuir-se na política e tentar atuar como fiador da
governabilidade – uma evidente disfuncionalidade do sistema.
Hugo Motta é novo, mas não é novato. O
deputado, que tem apenas 35 anos, está na Câmara desde os 21 e vem de uma
família repleta de políticos. Fez parte da base dos governos de Michel Temer e
de Jair Bolsonaro e hoje, malgrado ter votado a favor do impeachment de Dilma,
do teto de gastos e da reforma trabalhista – ou seja, tudo o que é execrado
pelo lulopetismo de almanaque –, é próximo do governo Lula e um dos principais
interlocutores do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Portanto, parece ser
gelatinoso o bastante para manter tudo como está.
A ameaça da escassez de água
O Estado de S. Paulo
Sistema de bacias hidrográficas opera com
menos da metade da capacidade, mas ainda há tempo para agir preventivamente e
evitar uma crise grave como a que se viu com as queimadas
O Brasil enfrenta hoje a pior seca desde o
início da série histórica, em 1950, com impacto severo sobre mais da metade do
território nacional. Foi com esse registro que o País assistiu à recente onda
de queimadas no Pantanal, na Amazônia e no Cerrado, e é com ele que o País
iniciará o período de chuvas com prognósticos desalentadores. Segundo as
previsões do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais
(Cemaden), nesta primavera as bacias hidrográficas das Regiões Norte, Nordeste,
Centro-Oeste e Sudeste podem atingir níveis de estiagem considerados
excepcionais e extremos. O alerta para o nível dos reservatórios não chega a
ser gravíssimo, segundo o Cemaden, mas é preocupante: o sistema opera com menos
da metade da capacidade, mais baixo do que em 2023, ainda que bem acima dos
níveis de 2014 e 2015, quando São Paulo, por exemplo, viveu a maior crise de
abastecimento de sua história.
Não é um alerta desprovido de sentido. O
Brasil não pode ficar à mercê do risco de enfrentar um verão com menos chuva do
que deveria. Ou, mesmo que as chuvas sigam a média para o período, há regiões
que podem iniciar 2025 no limite da segurança. Com exceção dos negacionistas
mais delirantes, o País inteiro sabe que água é um bem escasso e valioso. Além
de servir para o abastecimento da população, a água é importante, também, para
o fornecimento de energia, por meio das usinas hidrelétricas. Segundo os dados
divulgados em meados de outubro, os reservatórios do subsistema
Sudeste/Centro-Oeste estão com 41% da capacidade. É mais do que na última
crise, em 2021, mas bem menos do que em 2023. No Nordeste, o nível é de 46%,
índice que ultrapassava 62% no ano passado. A queda se repete nos reservatórios
da Região Sul. Só o subsistema Norte subiu em relação a 2023, ancorado nos
reservatórios da Bacia do Tocantins, que estão mais cheios. A represa de
Furnas, em Minas Gerais, uma das principais do País, está com 30% da
capacidade, abaixo da chamada cota mínima.
O Brasil acompanhou o drama paulista em 2015,
com uma seca que durou dois anos e racionamento brutal que gerou demissões em
massa. E, convém lembrar, naquela época as emergências climáticas não haviam
chegado ao ponto de hoje. O ano de 2023, por exemplo, terminou como o mais
quente já registrado no Brasil e no mundo, segundo cientistas. Picos de
temperatura se somam a outros eventos extremos, o que só agrava o problema. A
água que inundou o Rio Grande do Sul, por exemplo, fez falta ao Pantanal, onde
o fogo se espalhou antes do período natural de seca. Nas previsões mais
sombrias, a escassez global de água está se aproximando – do México a Zâmbia,
passando pela Europa. Pelo menos metade da população do planeta enfrenta falta
de água em pelo menos um mês do ano. Até 2025, é provável que 1,8 bilhão de
pessoas vão lidar com o que a Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação (FAO) chama de “escassez absoluta de água”.
A porção ufanista do governo do presidente
Lula da Silva ainda costuma proclamar a privilegiada condição do País de
detentor de infinitas fontes de água doce. Mas já não é bem assim. Em 30 anos o
Brasil perdeu quase 16% de sua superfície de água, redução equivalente a uma
vez e meia toda a Região Nordeste, segundo estudo sobre a perda florestal e
hídrica realizado pelo MapBiomas, do Sistema de Estimativas de Emissões de
Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima. A Amazônia está em seu segundo
ano de seca, uma repetição atípica na história. No Cerrado, há baixa no lençol
freático.
O Brasil está, portanto, diante de um estágio
limite, isto é, há condições para que o País possa se preparar, fazer uso
consciente dos recursos hídricos e evitar uma tragédia no futuro breve, um
chamado para o qual estão convocados desde já o governo federal, os governos
estaduais e os atuais e novos prefeitos eleitos – além, é claro, de toda a
população. Como se sabe, a atuação do poder público brasileiro de maneira
preventiva costuma ser exceção, não regra. Alertar em alto e bom som agora é
útil para evitarmos que não se repita com a água o que se viu recentemente com
o fogo.
Protelando o ajuste fiscal
O Estado de S. Paulo
Sem data para a revisão de gastos, governo
tenta ganhar tempo com PEC para prorrogar a DRU
Se ainda havia alguma esperança de que o
governo anunciaria de uma vez um pacote de revisão de gastos públicos, a viagem
do ministro Fernando Haddad à Europa pôs por terra qualquer chance de que isso
ocorra no curto prazo. Defensor de medidas que fortaleçam o arcabouço fiscal,
Haddad passará a semana fora do País e voltará apenas no dia 9 de novembro.
Durante sua ausência, é improvável que as discussões avancem e que um plano
concreto seja divulgado.
O contexto reforça a falta de prioridade com
que o tema é tratado pelo presidente Lula da Silva, o que, a bem da verdade,
não surpreende ninguém. A questão é que o governo gerou expectativas de que
algo havia mudado e de que o presidente estava convencido sobre a necessidade
do pacote para recuperar o grau de investimento, sobretudo após melhora da nota
de crédito brasileira pela Moody’s, a primeira desde 2017.
Mas o País continua andando em círculos em
debates cuja solução o governo tenta adiar. O arcabouço fiscal, que limita o
avanço dos gastos a um crescimento real de 2,5% ao ano, tem sido incapaz de
frear a velocidade de algumas das principais despesas do governo. O teto não
vale para os pisos constitucionais da Saúde e da Educação, vinculados às
receitas, nem para os benefícios previdenciários, cujo piso acompanha a
variação do salário mínimo.
Ambas as políticas tendem a consumir um
espaço cada vez maior no Orçamento e a estrangular as despesas discricionárias.
Esse diagnóstico não vem de hoje, mas do fim de agosto do ano passado. Na
votação do arcabouço fiscal, os pisos constitucionais, cujo crescimento havia
sido limitado à inflação desde 2017 com a aprovação do teto de gastos, voltaram
a acompanhar as receitas, que têm tido um desempenho expressivo neste ano.
Em paralelo, o Congresso aprovou a medida
provisória enviada pelo Executivo que tornou lei a política de valorização do
salário mínimo. Além das aposentadorias e pensões, o mínimo também é piso para
benefícios assistenciais, abono salarial e seguro-desemprego e pressiona cada
vez mais as despesas.
Já faz, portanto, mais de um ano que a equipe
econômica sabe disso e tenta consertar as falhas estruturais do arcabouço
fiscal, enquanto parte do governo age como se esses problemas não existissem.
Há quem acredite que essas despesas não deveriam se adaptar ao arcabouço, mas
que o arcabouço é que precisa mudar para dar um jeito de comportá-las.
Foi esse mesmo dilema que enfraqueceu o teto
de gastos até levá-lo à inanição. A mais nova esperança da equipe econômica é
aproveitar a prorrogação da Desvinculação de Receitas da União (DRU), que
depende da aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), para
incluir medidas que enfrentem gastos estruturais no texto.
Flexibilizar a alocação de recursos e
permitir seu uso para outras finalidades certamente ajudará o governo, mas não
resolverá o problema de fundo. Desde 1994, quando ainda se chamava Fundo Social
de Emergência (FSE), a DRU tem sido desidratada e seu alcance, cada vez mais
reduzido. Será preciso ir além dessa vez.
É urgente definir o corte de gastos
Correio Braziliense
É cada vez mais sólido o consenso, entre
analistas, de que o colegiado decidirá por aumentar a taxa básica de juro em
0,5 ponto percentual. Assim, a Selic iria para 11,25% ao ano
A indefinição do governo Lula em relação ao
corte de gastos, somada a outros fatores internos e externos, põe a economia
brasileira em um momento delicado. Na última sexta-feira, o dólar fechou o dia
cotado a R$ 5,869 — o maior patamar desde maio de 2020 —, encerrando uma
sequência de altas consecutivas durante a semana. O impasse na agenda fiscal no
país e a possibilidade de uma vitória de Donald Trump na corrida à Casa Branca
formaram o cenário propício para aumentar o nervosismo dos investidores.
Não bastassem a demora do governo em anunciar
medidas concretas para o controle das contas públicas e as perspectivas
econômicas com a eleição nos Estados Unidos, a pressão inflacionária tem se
mostrado uma dificuldade adicional. Na segunda-feira, o boletim Focus,
divulgado pelo Banco Central, informou a expectativa do mercado em relação ao
Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Pela primeira vez, a
mediana das projeções para 2024 superou o teto de 4,5% estabelecido pelo
Conselho Monetário Nacional (CMN).
Esse cenário aumenta a expectativa em relação
à reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), marcada para terça e
quarta-feira. É cada vez mais sólido o consenso, entre analistas, de que o
colegiado decidirá por aumentar a taxa básica de juro em 0,5 ponto percentual.
Assim, a Selic iria para 11,25% ao ano, em um esforço da autoridade monetária
de direcionar a inflação ao centro da meta, de 3%, até 2026, considerando o
horizonte relevante.
Nessa conjuntura complexa, o governo Lula se
vê em uma encruzilhada. Precisa, a um só tempo, anunciar medidas econômicas que
reforcem o compromisso com o controle de gastos, sem prejudicar as diretrizes
da administração petista. Trata-se de uma queda de braço entre a equipe
econômica chefiada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e diversos
setores da Esplanada, além do próprio Palácio do Planalto, refratários ao
inevitável corte de gastos que precisa ocorrer.
Nos últimos dias, pelo menos dois integrantes
do alto escalão lulista explicitaram o desconforto com as medidas em estudo na
Fazenda. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, considerou uma
"agressão" cogitar restrições ao abono salarial e ao seguro-desemprego
sem a sua participação, mencionando até a própria demissão. Da mesma forma, o
titular do MEC, Camilo Santana, opôs-se claramente à flexibilização do piso
constitucional para a educação. Há, ainda, as convicções do próprio presidente
da República, como a política de valorização do salário mínimo.
Como se vê, são muitas as variáveis a afetar o delicado momento econômico. O governo precisa agir com rapidez e transparência, pois o cenário é de muita desconfiança. Considere-se, ainda, um fator político complicador. A menos de dois anos para a eleição de 2026, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional tenderão a manter ou até a aumentar as pressões sobre o Orçamento. Não há calmaria no horizonte.
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