PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
Fábio Wanderley Reis
Mestre Alessandro Pizzorno é o autor de um ensaio clássico sobre a participação política, publicado na Itália em 1966 ("Introduzione allo studio della partecipazione politica"). Nele, a perspectiva dominante nos estudos acadêmicos estadunidenses sobre o tema, especialmente sobre a participação eleitoral, é contraposta a outra empenhada em recuperar os efeitos da experiência dos partidos de massa socialistas e sua gradual inserção no jogo eleitoral da democracia. Enquanto nos Estados Unidos predominava a chamada teoria da "centralidade", que mostrava a conexão da participação eleitoral com traços variados tomados como dimensões reveladoras de maior ou menor proximidade a um suposto "centro" da sociedade (posição socioeconômica, escolaridade, experiência urbana, rede de contatos sociais), Pizzorno invocava a idéia marxista do desenvolvimento da "consciência de classe" como referência de um modelo alternativo: com a inserção na dinâmica das disputas eleitorais minando aos poucos o compromisso "instrumental" com a idéia da revolução anticapitalista, a adesão retórica ao ideário revolucionário se acomodava à convivência pragmática com o sistema vigente (às vezes sob a forma peculiar de "subculturas" associadas ao controle partidário continuado de localidades ou regiões "vermelhas") e com o empenho de mudá-lo gradualmente na direção do que resultou corresponder à socialdemocracia do pós-guerra.
Uma forma talvez mais correta de apreender a dinâmica geral, que eu mesmo andei propondo, envolve a articulação das duas perspectivas. O ponto decisivo é que o próprio desenvolvimento ou afirmação da "consciência de classe" e seu impacto sobre a participação político-eleitoral, que a socialdemocracia torna menos dramático, dependem de fatores que não são outros, na verdade, senão os que aponta a teoria da centralidade. Como as elaborações do próprio Marx destacavam, tratar-se-ia, em particular, de que condições materiais apropriadas viessem a permitir o acesso aos recursos intelectuais (em contraposição, por exemplo, à fórmula famosa sobre a "idiotia da vida rural") necessários à busca política de objetivos de transformação.
Clientelismo como mais do que mero escambo
Transposta para o campo das disputas eleitorais num caso como o brasileiro, marcado por intensa desigualdade social, essa visão integrada permitiria, entre outras coisas, dar conta de algo que o senso comum e as pesquisas mostram com nitidez: o fato de que as camadas mais inclinadas a ver a arena política como propícia à busca de interesses e mais aptas a persegui-los nessa arena, incluída a dimensão eleitoral, são as camadas socioeconômicas mais favorecidas, de melhores níveis educacionais e maior informação - enquanto as camadas menos favorecidas se orientariam com freqüência antes por imagens toscas e se revelariam, em consequência, passíveis de manipulações de um tipo ou outro. Daí que a maneira realista de esperar que se possa avançar na construção partidária e de instituições político-eleitorais efetivas, em geral, exija que se conte com identificações populares que conterão fatalmente alguns ingredientes do que se costuma designar negativamente como "populismo" - e que se possa dispor de tipos de populismo de melhor potencial institucional. Como salientei aqui há algum tempo, no caso de Lula e em alguns outros casos atuais do que se andou chamando de "populismo carismático" na América Latina, há quando nada a peculiaridade, em confronto com nosso populismo tradicional, da extração social mais autenticamente popular dos líderes.
Em entrevista realizada no ano passado (e divulgada em "Partecipazione e Conflito", 2008, 1, 0), Pizzorno é incitado a refletir de novo sobre o tema de seu velho ensaio. Não supreendentemente, temos múltiplas referências a fenômenos que adquirem pelo menos feições mais nítidas nos quarenta anos transcorridos: a importância muito menor da participação de tipo "clássico" nos partidos de massa, em que tende a predominar a atividade dos "funcionários"; o surgimento de "canais paralelos de representação", em que o desenvolvimento dos "grupos de pressão" (onde se trata de "portadores de interesses" autônomos e dispersos e não de representantes ou mandatários de outros) coexiste com movimentos sociais em que os titulares dos interesses são imaginados ou "construídos" (os pobres do mundo, o planeta Terra...) e em que "o trabalho ideológico necessário consiste justamente em definir os interesses buscados"; a intensificação do caráter profissional da atividade política, em particular com o que P. Mair e R. S. Katz têm chamado "partidos-cartel", vistos como novo episódio da evolução geral dos partidos.
Há também, contudo, na volta ao tema, a insistência em aspectos que se mostram afins a alguns dos traços importantes da participação via partidos de massa e seu apelo à solidariedade: o componente "ritual" (e interpessoal, intersubjetivo) da participação político-eleitoral, contra a ênfase, que Pizzorno considera excessiva, na busca "racional" de objetivos ou interesses; a diversificação "ética" dos partidos, atentos para temas que outros designam como "não-materiais"; e, entre outras coisas, a ênfase em que o próprio clientelismo (em contraste com a pura e simples compra de votos) seria antes um fenômeno de "pertencimento" (identificação, embora Pizzorno rejeite o termo) do que de mero escambo ou troca de interesses.
Essa visão do clientelismo será talvez de relevância para o exame apropriado das potencialidades institucionais (e mesmo político-eleitorais mais imediatas) do lulismo, com o distributivismo que alguns caracterizam de populista. Quanto aos movimentos e seus titulares "construídos" de interesses, o melhor exemplo dos riscos da "imaginação ideológica" no mundo das duras réplicas ao socialismo é provavelmente dado pela loucura das Farc. Cujos reveses, menos mal, vêm se acumulando.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Fábio Wanderley Reis
Mestre Alessandro Pizzorno é o autor de um ensaio clássico sobre a participação política, publicado na Itália em 1966 ("Introduzione allo studio della partecipazione politica"). Nele, a perspectiva dominante nos estudos acadêmicos estadunidenses sobre o tema, especialmente sobre a participação eleitoral, é contraposta a outra empenhada em recuperar os efeitos da experiência dos partidos de massa socialistas e sua gradual inserção no jogo eleitoral da democracia. Enquanto nos Estados Unidos predominava a chamada teoria da "centralidade", que mostrava a conexão da participação eleitoral com traços variados tomados como dimensões reveladoras de maior ou menor proximidade a um suposto "centro" da sociedade (posição socioeconômica, escolaridade, experiência urbana, rede de contatos sociais), Pizzorno invocava a idéia marxista do desenvolvimento da "consciência de classe" como referência de um modelo alternativo: com a inserção na dinâmica das disputas eleitorais minando aos poucos o compromisso "instrumental" com a idéia da revolução anticapitalista, a adesão retórica ao ideário revolucionário se acomodava à convivência pragmática com o sistema vigente (às vezes sob a forma peculiar de "subculturas" associadas ao controle partidário continuado de localidades ou regiões "vermelhas") e com o empenho de mudá-lo gradualmente na direção do que resultou corresponder à socialdemocracia do pós-guerra.
Uma forma talvez mais correta de apreender a dinâmica geral, que eu mesmo andei propondo, envolve a articulação das duas perspectivas. O ponto decisivo é que o próprio desenvolvimento ou afirmação da "consciência de classe" e seu impacto sobre a participação político-eleitoral, que a socialdemocracia torna menos dramático, dependem de fatores que não são outros, na verdade, senão os que aponta a teoria da centralidade. Como as elaborações do próprio Marx destacavam, tratar-se-ia, em particular, de que condições materiais apropriadas viessem a permitir o acesso aos recursos intelectuais (em contraposição, por exemplo, à fórmula famosa sobre a "idiotia da vida rural") necessários à busca política de objetivos de transformação.
Clientelismo como mais do que mero escambo
Transposta para o campo das disputas eleitorais num caso como o brasileiro, marcado por intensa desigualdade social, essa visão integrada permitiria, entre outras coisas, dar conta de algo que o senso comum e as pesquisas mostram com nitidez: o fato de que as camadas mais inclinadas a ver a arena política como propícia à busca de interesses e mais aptas a persegui-los nessa arena, incluída a dimensão eleitoral, são as camadas socioeconômicas mais favorecidas, de melhores níveis educacionais e maior informação - enquanto as camadas menos favorecidas se orientariam com freqüência antes por imagens toscas e se revelariam, em consequência, passíveis de manipulações de um tipo ou outro. Daí que a maneira realista de esperar que se possa avançar na construção partidária e de instituições político-eleitorais efetivas, em geral, exija que se conte com identificações populares que conterão fatalmente alguns ingredientes do que se costuma designar negativamente como "populismo" - e que se possa dispor de tipos de populismo de melhor potencial institucional. Como salientei aqui há algum tempo, no caso de Lula e em alguns outros casos atuais do que se andou chamando de "populismo carismático" na América Latina, há quando nada a peculiaridade, em confronto com nosso populismo tradicional, da extração social mais autenticamente popular dos líderes.
Em entrevista realizada no ano passado (e divulgada em "Partecipazione e Conflito", 2008, 1, 0), Pizzorno é incitado a refletir de novo sobre o tema de seu velho ensaio. Não supreendentemente, temos múltiplas referências a fenômenos que adquirem pelo menos feições mais nítidas nos quarenta anos transcorridos: a importância muito menor da participação de tipo "clássico" nos partidos de massa, em que tende a predominar a atividade dos "funcionários"; o surgimento de "canais paralelos de representação", em que o desenvolvimento dos "grupos de pressão" (onde se trata de "portadores de interesses" autônomos e dispersos e não de representantes ou mandatários de outros) coexiste com movimentos sociais em que os titulares dos interesses são imaginados ou "construídos" (os pobres do mundo, o planeta Terra...) e em que "o trabalho ideológico necessário consiste justamente em definir os interesses buscados"; a intensificação do caráter profissional da atividade política, em particular com o que P. Mair e R. S. Katz têm chamado "partidos-cartel", vistos como novo episódio da evolução geral dos partidos.
Há também, contudo, na volta ao tema, a insistência em aspectos que se mostram afins a alguns dos traços importantes da participação via partidos de massa e seu apelo à solidariedade: o componente "ritual" (e interpessoal, intersubjetivo) da participação político-eleitoral, contra a ênfase, que Pizzorno considera excessiva, na busca "racional" de objetivos ou interesses; a diversificação "ética" dos partidos, atentos para temas que outros designam como "não-materiais"; e, entre outras coisas, a ênfase em que o próprio clientelismo (em contraste com a pura e simples compra de votos) seria antes um fenômeno de "pertencimento" (identificação, embora Pizzorno rejeite o termo) do que de mero escambo ou troca de interesses.
Essa visão do clientelismo será talvez de relevância para o exame apropriado das potencialidades institucionais (e mesmo político-eleitorais mais imediatas) do lulismo, com o distributivismo que alguns caracterizam de populista. Quanto aos movimentos e seus titulares "construídos" de interesses, o melhor exemplo dos riscos da "imaginação ideológica" no mundo das duras réplicas ao socialismo é provavelmente dado pela loucura das Farc. Cujos reveses, menos mal, vêm se acumulando.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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