OS TORTURADOS NA DEMOCRACIA
Dora Kramer
O estado de completa insegurança do público e a incapacidade provada e comprovada do Estado em enfrentar o aumento inclemente da criminalidade não interditam o debate sobre o acerto de contas com os crimes da ditadura, pedido por perseguidos políticos, familiares de mortos e agora encampado pelo governo federal.
A discussão é pertinente, a cobrança é legítima, o entendimento de que torturadores não são criminosos políticos, mas facínoras como outros quaisquer faz todo o sentido, mas não se trata de uma questão que requeira do poder público uma providência urgente nem que esteja a assombrar a Nação.
Esta hoje se estarrece muito mais com os crimes que assiste, e sofre, no cotidiano presente, do que com as violências cometidas no passado por um Estado que avocou a si o direito de posse sobre o pensamento de seus cidadãos.
Na última quinta-feira, a punição aos torturadores do regime militar e a exclusão deles da Lei de Anistia foram reabertas durante uma audiência pública do ministro da Justiça, Tarso Genro, e do secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, com a Comissão de Anistia.
Até então ambíguo na abordagem do tema, com uma tendência a não reavivar atritos com os militares - posição expressa na manutenção do sigilo sobre os arquivos do período autoritário -, o governo foi explícito na defesa da punição aos torturadores.
"A partir do momento em que o agente do Estado pega o prisioneiro e o tortura num porão, ele sai da legalidade do próprio regime militar e se torna um criminoso comum e tem de ser responsabilizado", disse o ministro Tarso Genro em consonância com o secretário de Direitos Humanos, que propõe uma posição ativa por parte da União para identificar e processar quem matou, torturou, estuprou ou ocultou cadáveres em nome do regime.
De acordo com o ministro e o titular da secretaria, criminosos comuns não podem ser protegidos pela Lei de Anistia de 1979 porque ultrapassaram os limites das próprias regras de exceção vigentes na época.
Os militares reagiram, é claro, apontando na posição do governo intenções puramente "revanchistas".
Provavelmente o que mobiliza o ministério não é o desejo de vingança e certamente as razões dos diretamente atingidos refletem o anseio de qualquer vítima, direta ou indireta, da violência: a reparação.
É um problema em aberto há anos, cabe realmente ao governo tomar uma posição, mas, convenhamos, é preciso que o poder público tenha discernimento e sensibilidade sobre o momento e a oportunidade de fazê-lo.
Não importa o número dos que foram vítimas da ditadura nem se trata de compará-lo à quantidade de gente que é diariamente vítima da criminalidade. Atrocidades contra um ou contra dez milhões são sempre atrocidades.
O que soa fora do eixo é a atenção dedicada pelo governo a um tema do passado em contraposição à quase total indiferença em relação aos crimes - também comuns, como aqueles - cometidos no presente, que serão cometidos daqui a pouco e de novo ocorrerão amanhã, depois e cada vez com mais selvageria.
À exceção de ocasiões em que ocorrem episódios chocantes não se vê as autoridades debruçadas com tanto afinco na proposição de ações objetivas para garantir as vidas da geração atual. Como se os torturados na democracia valessem menos que os brutalizados na ditadura.
Com toda reverência que merece o assunto, um Estado que não lida com o que vê não tem a prerrogativa de olhar para trás.
Agenda máxima
Para que não soe como crítica, estabeleça-se a preliminar: a campanha institucional do Tribunal Superior Eleitoral conclamando o eleitor a votar em gente de "passado limpo" é irretocável. Necessária, didática e oportuna.
Indispensável, porém, que outras instituições interessadas na melhoria da representação política aproveitem o ensejo para acrescentar que vida pregressa limpa é só um pré-requisito básico.
Nem só de honestidade se faz uma excelência. É preciso comprovação de eficácia nos quesitos que realmente fazem o diferencial no governante ou no representante legislativo.
Um honrado inepto é tão insatisfatório quanto um pilantra eficaz. Há exemplos de sobra na praça em ambas as categorias.
O problema do furor moralizante - justo - é conferir uma sensação de saciedade ao cidadão que acaba perdendo a referência do preparo, da eficácia, da experiência, da inteligência, do bom senso, do senso da legalidade em todos os sentidos, do respeito aos limites do poder, e reduz a quase nada seu grau de exigência.
Depende
Paulo Maluf diz que "errou de boa-fé" ao apostar na eleição de Celso Pitta para prefeito de São Paulo, em 1996. Por esse critério, ao embarcar na canoa, Pitta teria acertado movido pelos bônus presumidos da má-fé.
Dora Kramer
O estado de completa insegurança do público e a incapacidade provada e comprovada do Estado em enfrentar o aumento inclemente da criminalidade não interditam o debate sobre o acerto de contas com os crimes da ditadura, pedido por perseguidos políticos, familiares de mortos e agora encampado pelo governo federal.
A discussão é pertinente, a cobrança é legítima, o entendimento de que torturadores não são criminosos políticos, mas facínoras como outros quaisquer faz todo o sentido, mas não se trata de uma questão que requeira do poder público uma providência urgente nem que esteja a assombrar a Nação.
Esta hoje se estarrece muito mais com os crimes que assiste, e sofre, no cotidiano presente, do que com as violências cometidas no passado por um Estado que avocou a si o direito de posse sobre o pensamento de seus cidadãos.
Na última quinta-feira, a punição aos torturadores do regime militar e a exclusão deles da Lei de Anistia foram reabertas durante uma audiência pública do ministro da Justiça, Tarso Genro, e do secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, com a Comissão de Anistia.
Até então ambíguo na abordagem do tema, com uma tendência a não reavivar atritos com os militares - posição expressa na manutenção do sigilo sobre os arquivos do período autoritário -, o governo foi explícito na defesa da punição aos torturadores.
"A partir do momento em que o agente do Estado pega o prisioneiro e o tortura num porão, ele sai da legalidade do próprio regime militar e se torna um criminoso comum e tem de ser responsabilizado", disse o ministro Tarso Genro em consonância com o secretário de Direitos Humanos, que propõe uma posição ativa por parte da União para identificar e processar quem matou, torturou, estuprou ou ocultou cadáveres em nome do regime.
De acordo com o ministro e o titular da secretaria, criminosos comuns não podem ser protegidos pela Lei de Anistia de 1979 porque ultrapassaram os limites das próprias regras de exceção vigentes na época.
Os militares reagiram, é claro, apontando na posição do governo intenções puramente "revanchistas".
Provavelmente o que mobiliza o ministério não é o desejo de vingança e certamente as razões dos diretamente atingidos refletem o anseio de qualquer vítima, direta ou indireta, da violência: a reparação.
É um problema em aberto há anos, cabe realmente ao governo tomar uma posição, mas, convenhamos, é preciso que o poder público tenha discernimento e sensibilidade sobre o momento e a oportunidade de fazê-lo.
Não importa o número dos que foram vítimas da ditadura nem se trata de compará-lo à quantidade de gente que é diariamente vítima da criminalidade. Atrocidades contra um ou contra dez milhões são sempre atrocidades.
O que soa fora do eixo é a atenção dedicada pelo governo a um tema do passado em contraposição à quase total indiferença em relação aos crimes - também comuns, como aqueles - cometidos no presente, que serão cometidos daqui a pouco e de novo ocorrerão amanhã, depois e cada vez com mais selvageria.
À exceção de ocasiões em que ocorrem episódios chocantes não se vê as autoridades debruçadas com tanto afinco na proposição de ações objetivas para garantir as vidas da geração atual. Como se os torturados na democracia valessem menos que os brutalizados na ditadura.
Com toda reverência que merece o assunto, um Estado que não lida com o que vê não tem a prerrogativa de olhar para trás.
Agenda máxima
Para que não soe como crítica, estabeleça-se a preliminar: a campanha institucional do Tribunal Superior Eleitoral conclamando o eleitor a votar em gente de "passado limpo" é irretocável. Necessária, didática e oportuna.
Indispensável, porém, que outras instituições interessadas na melhoria da representação política aproveitem o ensejo para acrescentar que vida pregressa limpa é só um pré-requisito básico.
Nem só de honestidade se faz uma excelência. É preciso comprovação de eficácia nos quesitos que realmente fazem o diferencial no governante ou no representante legislativo.
Um honrado inepto é tão insatisfatório quanto um pilantra eficaz. Há exemplos de sobra na praça em ambas as categorias.
O problema do furor moralizante - justo - é conferir uma sensação de saciedade ao cidadão que acaba perdendo a referência do preparo, da eficácia, da experiência, da inteligência, do bom senso, do senso da legalidade em todos os sentidos, do respeito aos limites do poder, e reduz a quase nada seu grau de exigência.
Depende
Paulo Maluf diz que "errou de boa-fé" ao apostar na eleição de Celso Pitta para prefeito de São Paulo, em 1996. Por esse critério, ao embarcar na canoa, Pitta teria acertado movido pelos bônus presumidos da má-fé.
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