domingo, 3 de agosto de 2008

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)


CHAMEM OS FILÓSOFOS
Alberto Dines

Perplexo diante do mundo? Quer entender o que está se passando em tantas esferas simultaneamente? A avalancha de informações diárias não consegue se articular para sossegar as suas angústias?

Então, uma boa notícia: sempre foi assim. O ser humano, apesar da mente privilegiada, é no fundo um zumbi, vagueando desnorteado a horas mortas nos quatro cantos do mundo. Para ajudá-lo, existem os filósofos cujo oficio é ocupar-se com as perguntas irrespondíveis e inabaláveis. Quando os questionamentos mostram-se permeáveis a uma explicação, deixam de ser eternos. Neste caso, recorra aos poetas e artistas e, dependendo da esfera em que ocorrem, convoque historiadores – eles sabem que nada mudou, apenas as circunstâncias.

O raciocínio, evidentemente, não se aplica àqueles cujas dúvidas foram resolvidas através das diferentes adesões religiosas. Estes são teoricamente infensos ao atordoamento, jamais se sentirão à beira do abismo embora tão sujeitos a despencar nele como os descrentes.

No âmbito mundial, graças ao distanciamento, é menos complicado entender e desfiar o grande novelo. As metamorfoses visuais e profissionais de Radovan Karadzic são o lado patético da tragédia que enlutou a Europa e a humanidade ao longo de todo o século passado. A xenofobia étnica e religiosa da qual ele é a expressão contemporânea mais bestial são os pavios das duas grandes guerras (1914 e 1939) e da sangueira na ex-Iugoslávia. A perseguição aos ciganos hoje na Itália só não lembram Mussolini para os infelizes que não sabem quem foi Mussolini.

Era inevitável o colapso da rodada de Doha porque faltava um suporte político (espiritual ou humanitário) capaz de amparar o convívio entre sistemas e interesses econômicos tão diferenciados. O fenômeno da globalização tem sido tocado apenas por motivações fisiológicas (ou fisiocráticas), por isso converteu-se no corolário do aquecimento climático mundial. As soluções pacificadoras são viáveis quando o objetivo claramente enunciado é a paz e não as pequenas tréguas.

No cenário brasileiro, as aflições e indignações por mais díspares que sejam, têm origem única: nossa democracia é insuficiente, precária, limita-se ao cumprimento estrito do calendário eleitoral e algumas de suas exigências mais visíveis. Não necessariamente as fundamentais.

O Estado de Direito como construção social, a isonomia como um princípio moral cotidiano, o sistema da representação popular com o equilíbrio entre os poderes são ficções e como todas as ficções mais ou menos próximas da realidade. Nunca incorporam-se à realidade. A corrupção assumiu o lugar da mãe de todos os malefícios simplesmente porque não conseguiu ser qualificada como subversiva, delito contra a ordem constitucional. A surpreendente conversa telefônica sobre o caso Daniel Dantas entre o advogado Luís Eduardo Greenhalgh e o chefe de gabinete da presidência, Gilberto Carvalho só teria conseqüências numa sociedade há muito liberada da tirânica lei "aos amigos, tudo".

Aqui, tudo começa e acaba na corrupção porque combatê-la, ao invés de converter-se em símbolo de um grande pacto nacional, virou kitsch, estigma do moralismo pequeno burguês. A organização criminosa que operava o mensalão não apenas enchia os bolsos, maletas e cuecas de dinheiro, ela solapava as bases da nossa democracia. Reconhecer isso exige sacrifícios que talvez só os filósofos são capazes de oferecer.

A tortura imposta aos cidadãos pelos perversos call centers e pela impostura dos Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) é um atentado diário aos direitos humanos. Totalitarismo da corporação empresarial associado ao autoritarismo dos agentes públicos encarregados de fiscalizá-la.

A greve dos correios de 20 dias penalizou a sociedade inteira, causou enormes prejuízos aos mais carentes, sequer foram oferecidos os serviços mínimos garantidos por lei, mas a pane de 24 horas na internet mobilizou as autoridades que exigiram reparações aos usuários prejudicados – os mais ricos.

A devida percepção das nossas carências democráticas tornaria tudo mais fácil, mais justo e, sobretudo, menos impiedoso. Antes disso é preciso convocar os filósofos para lhes propor aquelas perguntas sem respostas, inconformadas, inconvenientes. Eternas.


» Alberto Dines é jornalista.

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