quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Crítica aos ardis anunciados

José Nêumanne
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Dois recentes institutos da democracia brasileira serão postos em xeque em 2009: a eleição em dois turnos e a reeleição.

A primeira o será pela jurisprudência, a ser fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando, findo o recesso, em fevereiro, reabrir os trabalhos com o julgamento do governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima, que produzirá efeitos sobre processos similares contra seus colegas do Maranhão, Jackson Lago, e de Santa Catarina, Luiz Henrique. Se Cássio for cassado (e isso sinalizar solução idêntica para os outros dois), a legislação eleitoral indica que seu sucessor será o segundo colocado na disputa - no caso paraibano, o senador José Maranhão. Tudo parece muito simples, porque a tradição eleitoral brasileira sempre foi a da disputa num turno só e isso permite a substituição do primeiro pelo segundo, deste pelo terceiro e daí em diante. Só que no segundo turno o eleitor toma uma decisão definitiva e, aí, não é o caso de falar em segundo colocado, mas em derrotado. Ou seja, o eleitor escolheu entre um e outro e a posse do preterido por interferência judicial implica contrariar a vontade popular expressa nas urnas. Não podendo ser empossado o vice, também réu no mesmo processo eleitoral, evidencia-se uma lacuna a ser preenchida pelo Poder Judiciário na interpretação de uma lei incompleta. Que fazer? Entregar o cargo ao presidente da Assembleia? Convocar eleições para o cumprimento da metade do mandato até as eleições seguintes? Isso não foi previsto pelo legislador apressado na hora de criar uma norma que revolucionou a escolha do mandatário pelo voto direto - norma, aliás, aprovada na prática. Cabe repensar o sistema eleitoral preenchendo esta lacuna para evitar que o STF tenha de optar entre a impunidade eventual e o intolerável menosprezo à manifestação majoritária do eleitorado.

Menos sutil e muito mais grave é a discussão no Congresso do projeto que acaba com a reeleição e estica os mandatos executivos de quatro para cinco anos. O golpe de aumentar o mandato é vil e acintoso, mas não é inédito. O Congresso já o aplicou no governo Castelo Branco, o primeiro da ditadura militar, que foi justificada como uma necessária intervenção para evitar uma quebra de regras democráticas por uma eventual República sindicalista e terminou por nos impingir dois decênios de arbítrio. E também já foi adotado a pretexto de reorganizar o calendário eleitoral.

A justificativa que se dá ao golpe agora é de um cinismo vil: trata-se de uma tentativa de “reparar o erro cometido pelo Congresso ao se deixar comprar para aceitar a proposta continuísta do ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso”. Se já é um absurdo sem conta tentar reparar um erro cometendo outro, mais absurdo isso se torna pelo fato de se basear em acusações não comprovadas e agressões à lógica dos fatos. Não há provas de que Fernando Henrique tenha comprado a reeleição e, se provas houvesse, seria o caso de levá-las à Justiça e o ex-presidente e os parlamentares que ele tivesse comprado, ao banco dos réus, passíveis de duras penas. Em vez disso, vem-se com essa conversa de enganar trouxa para atender aos interesses dos poderosos do momento, com a cumplicidade de próceres da oposição, também tentados pela possibilidade de tirar proveito na tramoia.

Tramoia, sim! É até admissível discutir a sutileza do argumento, antes exposto, sobre a interferência eventualmente descabida da Justiça ao alterar a vontade popular empossando um candidato derrotado para punir o vencedor, condenando por extensão o eleitor que o escolheu. Mas a extinção do instituto da reeleição será resultado de um golpe sórdido das elites dirigentes da política nacional contra a cidadania sem voz. O fato de Lula, do PT, ter sido reeleito presidente, apesar de sempre haver discordado da reeleição, e de seus correligionários denunciarem com estardalhaço e poucas provas a compra dos votos dos parlamentares que a aprovaram é a evidência mais cabal de que - fosse qual fosse seu vício de origem - a oportunidade de repetir o governo que aprova e derrotar o governante que reprova tem sido usada com sabedoria pelo cidadão. O exemplo de Lula é o mais forte, mas não é único: as últimas eleições municipais são riquíssimas em comprovações de que a possibilidade de manter um bom mandatário tem sido bem aproveitada pelos eleitores brasileiros. O caso de São Paulo é exemplar: o paulistano optou entre dois gestores cujas obras já haviam sido por eles conhecidas e vivenciadas. Ou seja: a democracia deve mesmo ser definida como o menos pior dos sistemas políticos escolhidos pelo homem para governar suas comunidades. E pode ser aperfeiçoada.

Não é de todo descabida, ainda, a hipótese de uma mão-de-gato repousar sob as almofadas destes ardis anunciados contra a democracia para tornar viável a terceira reeleição consecutiva de Lula - por cavilosa omissão. Os políticos empregam seu engenho e arte para manter o poder com mais empenho e zelo até do que para chegar a ele. Não faltam astúcia e vontade a Lula e a seus companheiros de gestão e, se há um momento favorável para legislar em proveito próprio, é este em que o prestígio popular do chefe do governo bate recordes no País - a ponto de chamar a atenção do mundo, como demonstra sua colocação, inédita para brasileiros, entre os homens mais influentes do planeta, conforme a revista americana Newsweek. A entrevista do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) atribuindo à vontade do povo a proposta de ruptura constitucional é mais uma demonstração da necessidade de desarmar as arapucas com que tentam transformar a democracia, árdua conquista de todos nós, em pretexto para permanência no poder de um grupinho cujas ambições não têm limites.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

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