Desde a falência repentina do socialismo real um estado de profunda epersistente confusão espalhou-se pelo campo da esquerda. As velhas receitasmorreram e as novas ainda não surgiram. A maior parte das reações a essasituação apóia-se em avaliações tímidas do processo, que se recusam a chegaràs últimas conseqüências dos fatos e resultam, normalmente, no uso obstinadode palavras de ordem obsoletas como escudo contra as evidências da novarealidade. Tudo isso mantém e amplia a confusão.
Vejo um exemplo ilustrativo dessa situação no artigo recente de José Dirceu,publicado na Folha de São Paulo em 17 de abril, em polêmica com artigoanterior de Alberto Goldman.
Que diz Dirceu? Em síntese, que o PT nunca defendeu o modelo político departido único, típico do socialismo real; que, pelo contrário, sempredefendeu a democracia; e, finalmente, que se mantém no horizonte dosocialismo. O PSDB, por sua vez, seria um partido neo-liberal, comprometidocom a manutenção do capitalismo, que teria deixado um legado de pobreza,privataria e supressão de direitos dos trabalhadores.
Vou deixar de lado, no momento, os pontos em que as declarações de Dirceuentram em guerra com os fatos, como o alegado empobrecimento da populaçãobrasileira no governo tucano, para discutir seu argumento central: apermanência do PT no horizonte do socialismo.
O argumento poderia ter algum sentido se o conceito de socialismo comoprojeto político, social e econômico fosse claro e inequívoco. Na verdade,ocorre o oposto: o conceito de socialismo hoje é ambíguo, incerto e abrigapropostas e estratégias amplamente diferenciadas.
Enquanto existiu fora dos livros o socialismo foi definido por duascaracterísticas, relacionadas de muitas maneiras entre si: o sistemapolítico de partido único e o controle estatal sobre os meios de produção,com a substituição do mercado pelo planejamento centralizado.
Pois bem, o sistema de partido único persiste em alguns países egressos dosocialismo real, como China, Vietnam, Coréia e Cuba. O controle estatalsobre os meios de produção teve sorte ainda pior. Desapareceu da China, doVietnam e encontra-se hoje em franca derrocada em Cuba.
Nesse caso, que significa o horizonte do socialismo afirmado no texto doDirceu? Operação do mercado sem freios sob a gerência do partido único? Não.
Dirceu reitera, como vimos, a rejeição do PT á experiência política da UniãoSoviética e demais países socialistas. A alternativa, por exclusão, pareceser: democracia política mais controle estatal dos meios de produção. Emoutras palavras, a expansão lenta, gradual e segura do Estado na esferaeconômica.
Se socialismo é isso, novos problemas aparecem. Em primeiro lugar, essesocialismo está na contramão de toda a história recente e sequer a criseeconômica atual permite perceber alguma pista para o retorno ao mundonão-globalizado. Em segundo lugar, embora essa leitura do texto de Dirceuseja coerente com o discurso da campanha petista de 2006, está longe derefletir as opções políticas do governo nos dois mandatos do PresidenteLula.
Admitamos, por hipótese: tucanos são privatistas e petistas são estatistas.Houve alguma re-estatização no governo Lula? Não, pelo contrário, o governoLula beneficiou-se claramente das privatizações feitas no período FernandoHenrique.
Como entender essa dissonância entre o dito e o feito? Na tradição daesquerda é comum o recurso ao argumento etapista. Nessa linha, as condiçõesobjetivas impediriam a execução de objetivos programáticos mais ambiciosos eseria preciso, por um tempo, permanecer restrito a metas mais modestas. Nolimite, o governo Lula seria visto como uma necessária etapa neo-liberal darevolução brasileira. É possível que alguns dos partidários do governo assimpensem.
Para aqueles que não aceitam esse argumento a alternativa é exigir, do PT edo governo, um ajuste de coerência. Há aqueles, que reivindicam o ajustepela prática: façam o que dizem! Há que estatizar, então estatizemos.
Outros, aqueles que, na minha opinião, extraíram todas as lições dodesmoronamento do socialismo real, justamente porque o acompanharam até atentativa final de auto-reforma, demandam o ajuste pelo discurso: Digam oque fazem! Assumam que estão no campo da democracia e do mercado; quesocialismo, nesse campo, só pode significar distribuição de propriedade erenda, como antes, mas também e cada vez mais de conhecimento, poder,deveres e responsabilidades; e que o instrumento para tal é o Estado, mas umEstado reformado, de novo tipo.
A partir dessas premissas podemos discutir a continuidade e a mudança entreo atual governo e o anterior; onde houve avanço e onde retrocesso; aconstrução do consenso sobre uma nova agenda da esquerda e a redução daconfusão. O resto são projetos de eleição e de poder, com os conhecidostemperos do salvacionismo e da demonização do adversário.
Caetano Araújo, professor do Departamento de Sociologia da UNB, Presidente da Fundação Astrojildo Pereira e Editor da revista Política Democrática.
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