DEU NO VALOR ECONÔMICO
Por mais que vejamos com frequência a movimentação da imprensa e da chamada opinião pública em torno de um assunto que acaba se impondo à atenção de todos, raramente a teremos visto adquirir o caráter de fluidez e confusão que traz, no momento, o ruído em torno do Programa Nacional de Direitos Humanos. Parte disso se deve ao fato de o programa reunir num só pacote uma série de temas complicados que afetam diferentes interesses e grupos, e é patente que o governo Lula poderia ter sido mais prudente ou astuto no encaminhamento do assunto, quando nada em atenção ao seu possível impacto sobre o processo eleitoral de 2010. Mas é singular a maneira pela qual o foco do debate público se expandiu gradualmente. Deslocando-se do que parecia inicialmente uma "crise militar", relacionada com a possível revisão da lei de anistia, para a mobilização de categorias diversas interessadas em outros itens do programa, transformou-se também de mera iniciativa supostamente inepta do governo Lula, a merecer crítica cerrada pela suposta intenção de aceno à esquerda, em algo de maior alcance e mérito - um episódio de longa discussão internacional sobre o tema importante dos direitos humanos em que o governo Lula basicamente dá continuidade a iniciativas anteriores do governo Fernando Henrique, aliás com a participação ainda agora de figuras a ele ligadas e mesmo de governos estaduais do PSDB. E observam-se não só as distorções política e eleitoralmente motivadas do assunto, com tucanos a tratarem de dissociar-se dele, como também - menos mal - o gradual despertar da imprensa para as complexidades do tema, com vacilações que levam mesmo a que colunistas cheguem a manifestar avaliações contrastantes em dias sucessivos.
Um aspecto geral a favorecer a confusão, que Paulo Sérgio Pinheiro destacou, é a tendência da ONU e dos foros internacionais a dar à ideia de direitos humanos grande alcance e abrangência, levando-a bem além dos direitos civis e políticos tradicionais (ir e vir, processo legal, votar e ser votado) para incluir também direitos sociais, econômicos etc. Ora, essa é a tendência que há muito observamos quanto à ideia de cidadania, que se amplia e enriquece com as conquistas socialdemocráticas. Colocada em xeque com a globalização e a onda da dinâmica econômica em que o neoliberalismo se afirmou recentemente, tal tendência nunca chegou a ser de fato revertida em seus alicerces solidaristas e socialdemocráticos nos países europeus. E até nos Estados Unidos o que vemos agora, na esteira desmoralizante da maior crise econômica de décadas e seus efeitos sociais, é a tentativa, promissora não obstante as muitas resistências, de incorporar os benefícios de uma ampliada ideia de direitos ao ânimo competitivo que se dispõe a assistir ao convívio da riqueza com a desigualdade.
Os diferentes temas do programa comportam avaliações de matizes variados, difíceis de considerar de forma sintética. Os dispositivos sugeridos quanto aos movimentos sociais, com relevância direta para as ações do MST e a violência a que tais ações recorrem ou que acarretam, são talvez o ponto a mais claramente merecer objeções. Ao invés de termos eventualmente a atuação da Justiça bloqueada por "comissões de negociação", o que redundaria em suspender o direito de acesso à Justiça de uns em favor da afirmação cada vez mais inaceitavelmente violenta do suposto direito de outros, o desejável é que possamos dispor de uma Justiça capaz de agir prontamente para coibir a violência de parte a parte. Isso não exclui, por certo, a conveniência da ação no plano institucional e legal de que resultem, por parte da Justiça, a sensibilidade e a agilidade requeridas.
Temas como os relativos ao aborto e ao homossexualismo sofrem contaminação demasiado forte por perspectivas religiosas para que o debate político possa esperar esclarecê-los. Já com respeito à questão da imprensa, ou dos meios de comunicação de massa em geral, apesar de prestar-se a muitas manipulações, é certamente possível visualizar uma posição equilibrada, e não é à toa que diferentes versões do PNDH, tanto do governo FHC quanto do governo Lula, convergem em apontar a necessidade de algum tipo de controle nesse campo. A incontestável importância, para a democracia, de uma esfera pública de comunicação desimpedida, em que a imprensa cumpre papel decisivo, não é razão para que se deixe de reconhecer o que há de negativo, e mesmo o importante ingrediente de autoritarismo, na contínua moldagem unanimista e "politicamente correta" da "opinião pública" pela imprensa - e na frequente transformação do valor da liberdade de imprensa em arrogante ideologia profissional de uma categoria, em que as distorções se mascaram.
Resta o tema militares e anistia, origem da cacofonia atual. Creio que o problema central é o da possibilidade de separar o esforço de recuperar as informações e a memória dos eventos ligados à ditadura, de um lado, dos problemas éticos e jurídicos, de outro, relacionados à contraposição entre o objetivo de "fazer justiça" e a anistia como instrumento eminentemente político de pacificação, que Paulo Brossard recordou em artigo que tem circulado. Impossível aceitar que se pretenda vedar indefinidamente a todos nós o direito à memória, em particular diante dos muitos inocentes alcançados pela violência. Por outra parte, à ideia da anistia que renuncia a fazer justiça em nome da pacificação se soma uma ponderação que argumentos correntes esquecem: a de que a instituição militar como tal está inevitavelmente envolvida no assunto (foi ela que deu o golpe de 1964 e implantou a ditadura e sua dinâmica desregrada e violenta), e não há como pretender punir "o torturador" e confraternizar com seus chefes - a escolha é pacificação ou briga bem maior. O que não significa ver com gosto o governo espavorido a cada muxoxo de chefes militares.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Por mais que vejamos com frequência a movimentação da imprensa e da chamada opinião pública em torno de um assunto que acaba se impondo à atenção de todos, raramente a teremos visto adquirir o caráter de fluidez e confusão que traz, no momento, o ruído em torno do Programa Nacional de Direitos Humanos. Parte disso se deve ao fato de o programa reunir num só pacote uma série de temas complicados que afetam diferentes interesses e grupos, e é patente que o governo Lula poderia ter sido mais prudente ou astuto no encaminhamento do assunto, quando nada em atenção ao seu possível impacto sobre o processo eleitoral de 2010. Mas é singular a maneira pela qual o foco do debate público se expandiu gradualmente. Deslocando-se do que parecia inicialmente uma "crise militar", relacionada com a possível revisão da lei de anistia, para a mobilização de categorias diversas interessadas em outros itens do programa, transformou-se também de mera iniciativa supostamente inepta do governo Lula, a merecer crítica cerrada pela suposta intenção de aceno à esquerda, em algo de maior alcance e mérito - um episódio de longa discussão internacional sobre o tema importante dos direitos humanos em que o governo Lula basicamente dá continuidade a iniciativas anteriores do governo Fernando Henrique, aliás com a participação ainda agora de figuras a ele ligadas e mesmo de governos estaduais do PSDB. E observam-se não só as distorções política e eleitoralmente motivadas do assunto, com tucanos a tratarem de dissociar-se dele, como também - menos mal - o gradual despertar da imprensa para as complexidades do tema, com vacilações que levam mesmo a que colunistas cheguem a manifestar avaliações contrastantes em dias sucessivos.
Um aspecto geral a favorecer a confusão, que Paulo Sérgio Pinheiro destacou, é a tendência da ONU e dos foros internacionais a dar à ideia de direitos humanos grande alcance e abrangência, levando-a bem além dos direitos civis e políticos tradicionais (ir e vir, processo legal, votar e ser votado) para incluir também direitos sociais, econômicos etc. Ora, essa é a tendência que há muito observamos quanto à ideia de cidadania, que se amplia e enriquece com as conquistas socialdemocráticas. Colocada em xeque com a globalização e a onda da dinâmica econômica em que o neoliberalismo se afirmou recentemente, tal tendência nunca chegou a ser de fato revertida em seus alicerces solidaristas e socialdemocráticos nos países europeus. E até nos Estados Unidos o que vemos agora, na esteira desmoralizante da maior crise econômica de décadas e seus efeitos sociais, é a tentativa, promissora não obstante as muitas resistências, de incorporar os benefícios de uma ampliada ideia de direitos ao ânimo competitivo que se dispõe a assistir ao convívio da riqueza com a desigualdade.
Os diferentes temas do programa comportam avaliações de matizes variados, difíceis de considerar de forma sintética. Os dispositivos sugeridos quanto aos movimentos sociais, com relevância direta para as ações do MST e a violência a que tais ações recorrem ou que acarretam, são talvez o ponto a mais claramente merecer objeções. Ao invés de termos eventualmente a atuação da Justiça bloqueada por "comissões de negociação", o que redundaria em suspender o direito de acesso à Justiça de uns em favor da afirmação cada vez mais inaceitavelmente violenta do suposto direito de outros, o desejável é que possamos dispor de uma Justiça capaz de agir prontamente para coibir a violência de parte a parte. Isso não exclui, por certo, a conveniência da ação no plano institucional e legal de que resultem, por parte da Justiça, a sensibilidade e a agilidade requeridas.
Temas como os relativos ao aborto e ao homossexualismo sofrem contaminação demasiado forte por perspectivas religiosas para que o debate político possa esperar esclarecê-los. Já com respeito à questão da imprensa, ou dos meios de comunicação de massa em geral, apesar de prestar-se a muitas manipulações, é certamente possível visualizar uma posição equilibrada, e não é à toa que diferentes versões do PNDH, tanto do governo FHC quanto do governo Lula, convergem em apontar a necessidade de algum tipo de controle nesse campo. A incontestável importância, para a democracia, de uma esfera pública de comunicação desimpedida, em que a imprensa cumpre papel decisivo, não é razão para que se deixe de reconhecer o que há de negativo, e mesmo o importante ingrediente de autoritarismo, na contínua moldagem unanimista e "politicamente correta" da "opinião pública" pela imprensa - e na frequente transformação do valor da liberdade de imprensa em arrogante ideologia profissional de uma categoria, em que as distorções se mascaram.
Resta o tema militares e anistia, origem da cacofonia atual. Creio que o problema central é o da possibilidade de separar o esforço de recuperar as informações e a memória dos eventos ligados à ditadura, de um lado, dos problemas éticos e jurídicos, de outro, relacionados à contraposição entre o objetivo de "fazer justiça" e a anistia como instrumento eminentemente político de pacificação, que Paulo Brossard recordou em artigo que tem circulado. Impossível aceitar que se pretenda vedar indefinidamente a todos nós o direito à memória, em particular diante dos muitos inocentes alcançados pela violência. Por outra parte, à ideia da anistia que renuncia a fazer justiça em nome da pacificação se soma uma ponderação que argumentos correntes esquecem: a de que a instituição militar como tal está inevitavelmente envolvida no assunto (foi ela que deu o golpe de 1964 e implantou a ditadura e sua dinâmica desregrada e violenta), e não há como pretender punir "o torturador" e confraternizar com seus chefes - a escolha é pacificação ou briga bem maior. O que não significa ver com gosto o governo espavorido a cada muxoxo de chefes militares.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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