O novo acordo dos metalúrgicos do ABC indica a desideologização das lutas operárias
O recente acordo dos metalúrgicos do ABC, negociado com as montadoras, é obra de engenharia e prudência políticas que pode indicar inflexão numa história tendencialmente conflitiva nas relações laborais de uma região emblemática da política brasileira. Talvez seja marco de um fim de era nas relações trabalhistas da indústria, iniciada com as grandes e movimentadas assembleias no Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, nos anos 70. A distância das maneiras de pensar e reivindicar entre este momento e aquele é enorme. Parece vencida, também, a época das lutas operárias dominadas por nomes referenciais de lideranças. O fim do messianismo sindical representa um progresso social e político.
Não se trata de supor demais, mas de reconhecer que esta última década tem sido uma década de declínio na vitalidade dos movimentos sociais e da organização sindical, especialmente daqueles mais reivindicativos e mais influentes. O MST está hoje muito aquém do que foi em tempos recuados, embora a questão agrária ainda esteja pendente e a questão da agricultura familiar e alternativa indique carências sociais reais e possibilidade política válida e legítima. A UNE e o movimento estudantil estão muitíssimo aquém do que se deveria esperar num momento em que a questão educacional se agrava, com o declínio dos padrões de ensino e de escolaridade. A própria questão trabalhista está longe de justificar a calmaria dos pactos laborais de setores prósperos do operariado, como se vê por denúncias recentes de sobre-exploração do trabalho e de uso de trabalho escravo na indústria de confecções em cidades densamente urbanas, como São Paulo. A relação promíscua com o poder responde por esses declínios e por uma tendência ao conformismo. Mas responde, também, o esvaziamento histórico das reivindicações propriamente políticas que têm se nutrido, ao longo dos anos, de movimentos e reivindicações ditados por necessidades sociais que não eram e não são, propriamente, necessidades radicais.
O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC parece ter se adiantado na compreensão e aceitação dessa nova circunstância histórica, dos limites que contém e das possibilidades diferentes que abre. Conseguiu fixar um piso salarial de R$ 1.500 para novas contratações e um teto de R$ 8 mil, mais abono e incrementos reais de salários pelos próximos dois anos sem apelo a espetáculos manipulativos da opinião dos trabalhadores.
Os sindicalistas levaram em conta que estamos entrando em conjuntura de crise econômica internacional e de insegurança social. No episódio de agora, procuraram os trabalhadores antecipar-se aos efeitos potenciais da crise para a massa operária desse setor da economia, assegurando-lhe o nível dos salários. Evitaram reivindicações postiças. O crescimento antecipado do mercado ainda neste ano se deverá à introdução do novo motor Euro5 para caminhões, com elevação de 15% nos custos, crescimento, porém, que deve ser descontado do previsto para o próximo ano em face das antecipações de compras. O novo motor atende a exigências legais de redução da poluição ambiental. O acordo de agora indica o refluxo das lutas operárias para o plano negocial e contratual e sua desideologização, o que em princípio atenua a tradição do confronto de classes.
Mais importante do que o acordo salarial, têm os metalúrgicos consciência de que problema maior é o da importação de industrializados. Uma certa devastação se anuncia com o avanço dos produtos chineses no mercado brasileiro. Um sindicalista mencionou a inviabilização de 110 mil empregos pela entrada dos importados. Além do que, os salários chineses, mais baixos que os nossos, puxam para baixo os salários brasileiros quando se dá o confronto entre o produto nacional e o importado. O incremento das ocorrências de trabalho escravo aqui, em setores industriais urbanos, já reflete a concorrência entre modelos de relação laboral em que o Brasil não tem como enfrentar o concorrente sem degradar os salários de seus próprios trabalhadores. Mesmo que os salários chineses continuem melhorando, a demora afetará empregos e salários aqui.
Não só a indústria chinesa tem padrões tecnológicos superiores aos nossos, como tem a China um nível de produção de conhecimento científico e técnico superior ao nosso. Com o acordo, os trabalhadores querem tranquilidade para a batalha contra os importados e em favor de tecnologia, engenharia e inovação aplicados à indústria, como declarou o presidente do sindicato. Na verdade, as universidades brasileiras já há algumas décadas dão passos importantes nesse sentido, desde muito antes da China representar um risco para o equilíbrio econômico de países como o nosso. Em São Paulo, a Fapesp e as três universidades estaduais - USP, Unicamp e Unesp - têm uma longa história de dedicação ao desenvolvimento científico e tecnológico. Os trabalhadores é que não têm entre nós tradição de valorizar a produção do conhecimento e a função das instituições acadêmicas.
José de Souza Martins, sociólogo e professor emérito da USP, é autor de Uma Arqueologia da Memória Social
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS
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