Neste ano, a incômoda sensação de pagar muito imposto e não dispor de serviços públicos suficientes e bons não se prolongou. De todo modo vai ficando cada vez mais evidente a importância da política fiscal para a privatização da saúde. Mesmo que para uma parte dos contribuintes a dedução seja encarada como uma espécie de bônus - para tirar da fila do Sistema Único de Saúde (SUS) quem pode pagar -, fica uma pulga atrás da orelha.
Da constatação que, quanto mais se pagar por assistência privada, maior será o abatimento, deduz-se que os incentivos fiscais podem contribuir para a formação de várias classes de assistência privada. Mas o impacto das medidas e expectativas para reduzir juros e expandir o crédito talvez tenha deixado os questionamentos sobre as disparidades entre a magnitude da arrecadação e o destino dos tributos para trás.
Temas eletrizantes e complexos como as tensões entre banqueiros e governo sobre os spreads e desoneração de setores produtivos, mesmo sem tradução fácil, se tornaram palpáveis. Os anúncios de redução de IPI nos preços estampados em qualquer loja de eletrodomésticos e a variedade de oferta de empréstimos são diretos e objetivos. A economia a pleno, médio ou até pouco vapor também mudou o rumo das conversas sobre saúde.
Em tempos bicudos só tinha plano privado de saúde quem fosse trabalhador especializado de empresas de grande porte ou servidor público. Para somar os poucos empregados autônomos com domésticos e indivíduos com maior renda vinculados a planos de saúde bastavam seis dígitos. Tinha-se, então, a forte impressão de gigantismo do SUS e nanismo dos planos e seguros de saúde. Não era bem assim. Mesmo nas décadas recessivas, as dimensões da medicina privada sempre foram muito maiores do que as de seus potenciais consumidores e bagunçavam explicações simplistas. Mas, para fins de uma introdução ao sistema brasileiro, a ideia de um SUS para todos e poucos planos de saúde se coadunava com uma visão genérica sobre a distribuição de renda.
A situação atual é completamente distinta. A aterrissagem nos planos de saúde das aspirações de melhor atendimento dos denominados segmentos C e D alterou a fisionomia do sistema de saúde.
O intenso ritmo de crescimento dos negócios conduziu o Brasil ao limiar de uma americanização da saúde pré-Obama. Nessa marcha, e com a renovação dos incentivos à privatização, poderemos atingir, em médio prazo, a marca de 60% da população coberta por planos e seguros. Essa previsão não é um chute. Entre 2000 e 2010, a taxa de crescimento da população, 12,3%, foi bem menor do que a do aumento do número de contratos de planos de saúde, 48%. O potencial de expansão dos mercados tem sido a principal justificativa utilizada para a abertura do capital e da fusão e tomada de empréstimos de bancos de investimentos de diversas empresas de saúde.
Trata-se, é claro, de uma americanização à nossa moda. Como aqui tem SUS, os planos de saúde desenhados para atender às novas demandas são pouco abrangentes. Quem estiver vinculado a um plano relativamente mais barato e precisar utilizar serviços de saúde tem que tirar dinheiro do bolso para superar as restrições das coberturas e em certos casos pegar o caminho de volta para o SUS.
Pode-se dizer que não há nada de novo, a segmentação é uma regra comum a qualquer mercado. Os bancos e outros serviços customizam produtos. Porém, não é admissível diferenciar a qualidade de exames, transplantes ou consultas de acordo com o status básico ou vip dos clientes. Consequentemente, as legislações existentes pressupõem a igualdade biológica dos seres humanos e garantias assistenciais padronizadas.
A comercialização de planos com preços relativamente mais baixos colide com a democracia e a tendência inexorável de elevação das despesas com saúde.
A fragmentação das coberturas situa o Brasil na contramão dos países desenvolvidos. As propostas do recém-eleito presidente Hollande para a saúde, puxadas pelo compromisso de reduzir o tempo de espera do atendimento para no máximo meia hora, concentraram-se em torno do fortalecimento do sistema público. Na França, dizer que a saúde é um cimento do pacto republicano dá votos.
No Brasil, a Agência Nacional de Saúde Suplementar permite a atuação de planos com coberturas restritas, eufemisticamente alcunhadas flexíveis. Questionar as convicções sobre a suposta perfeição do sistema de saúde brasileiro (um SUS pobre para pobres e planos de saúde com garantias assistenciais precárias) costuma irritar determinados líderes da privatização.
A imposição de uma racionalidade de curto prazo sobre as reflexões acerca das alternativas para garantir o direito à saúde parece ser um suplemento vitamínico necessário à prosperidade dos negócios. A criação de um vasto e pouco sustentável mercado de planos de adesão (os denominados falsos coletivos) deixará para um SUS desprestigiado e subfinanciado a tarefa de assistir doentes graves e pagar tratamentos caros. Por isso, a chamada penetração do mercado exige o controle da faca, do queijo e da mão para extirpar desacordos. Uma verdade inabalável já anunciada dispensa esforços para avançar o conhecimento.
A rejeição a uma pesquisa realizada com o objetivo de estudar a reestruturação do mercado de planos de saúde pode ter sido movida por sinceras certezas. Mas a intolerância não pode se repetir. A desqualificação das reflexões críticas distrai, atrapalha, mas não desata os nós do sistema de saúde.
Ligia Bahia é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
FONTE: O GLOBO
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