sexta-feira, 27 de julho de 2012

E o mundo não se acabou - Luiz Carlos Mendonça de Barros

Apesar do bate-cabeças das lideranças políticas da zona do euro, acredito que uma solução será encontrada

Fui buscar no fundo de minha memória -e no YouTube- a letra de um velho samba do compositor Assis Valente, "E o mundo não se acabou". Havia muito tempo vinha associando o comportamento dos mercados financeiros nos últimos meses à situação vivida pelo personagem deste samba delicioso dos velhos tempos.

Transcrevo a seguir algumas das frases cantadas pela Carmen Miranda ou pela Adriana Calcanhoto:

"Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar, Acreditei nesta conversa mole e fui tratando de me despedir, eijei a boca de quem não devia, Peguei na mão de quem não conhecia, Dancei um samba em traje de maiô, Chamei um gajo com quem não me dava e perdoei sua ingratidão,

E o tal mundo não se acabou...".

Na versão moderna do fim do mundo que os mercados esperam, as reações das pessoas são de natureza diferente.

No lugar de beijos e outros sinais de intimidade que aparecem nas palavras de Assis Valente, temos ações concretas de investimentos e de especulação por parte de empresas, de bancos e de indivíduos. Cito algumas delas que me parecem reproduzir o quadro descrito no samba de quase um século.

Os investidores estão colocando seu dinheiro em títulos do Tesouro americano, de dez anos de prazo, a uma taxa de juros de 1,4% ao ano. Para uma economia que nos últimos 20 anos tem apresentado taxa de inflação média superior a 2% ao ano, esse investimento representa perda real de mais de 5% no período. No caso dos títulos de cinco anos, que a preços de hoje rendem ao investidor 0,6% ao ano, as perdas são de cerca de 7% no período.

Mas esse ato de aparente delírio não é o único. Os investidores estão correndo para títulos do Tesouro alemão, emitidos em euros, como uma manada de elefantes em fuga.

Os juros dos títulos de dois anos de prazo já são negativos -recebe-se no final menos euros do que foram aplicados-, e os de dez anos não passam de 1,3% ao ano.

A média histórica da inflação, em euros, também é superior a 2% ao ano, o que reproduz a mesma situação de prejuízo real encontrada no caso dos papéis americanos. Mas outra contradição chama a atenção nesse caso: esses papéis estão denominados em uma moeda que, os mercados juram, vai entrar em colapso em poucos meses e pode levar a prejuízos brutais. Ou seja, nonsense total.

Tenho reportado surpresa perante a reação dos chamados agentes econômicos de mercado em face da crise europeia. Não por falta de entendimento de sua complexidade -e gravidade-, mas sim pela desconsideração pelo que representaria um eventual colapso do euro do ponto de vista político e social.

A União Europeia de hoje é o estágio final de uma longa marcha de mais de 60 anos. Não custa lembrar ao leitor da Folha que tudo aconteceu nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, com a Europa arrasada e prostrada depois de mais de cinco anos de sofrimentos.

Por outro lado, é preciso ter em conta que, no desenho atual, a integração não é viável. As realidades nacionais dos países que fazem parte do euro não permitem a rigidez institucional do atual desenho. Esse é o desafio que os líderes de hoje enfrentam: reformar os marcos institucionais, mas sem voltar atrás na integração.

Mas essa realidade é sofisticada demais para a comunidade financeira, formada na sua grande maioria por indivíduos de limitada visão política e que não conseguem enxergar o mundo fora de sua perspectiva individualista e restrita a ganhos especulativos.

Por isso a dificuldade de analistas, que têm visão mais ampla, em navegar nesses tempos irracionais. Embora sinta isso na pele, ainda acredito que uma solução será encontrada, apesar do bate-cabeças das lideranças políticas.

Aliás, essa foi a mensagem corajosa do presidente do Banco Central Europeu, ontem, ao dizer que o BCE tudo fará para defender a integração europeia e o euro como moeda única.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, 69, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

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