Liguei no dia seguinte e ela me falou com aquela voz estranha: 'A polícia bateu nele até matá-lo'
Meu primeiro relacionamento mais próximo com Vinicius de Moraes foi durante um show que ele fez no Teatro Opinião, do qual eu fazia parte. Se não me engano, era um show com os jovens baianos, que mal surgiam e aos quais ele queria dar força. Antes ou depois do show, íamos para um boteco ali perto jogar conversa fora. Vinicius nunca falava nada sério, fazia piadas ou contava histórias picantes e divertidas.
Nosso convívio maior foi, 20 anos depois, em Buenos Aires. Todo mundo conhece a história da gravação do "Poema Sujo", que ele trouxe para o Brasil e o difundiu como pôde. Poeta fazer isso por outro poeta é coisa rara, mas Vinicius era assim mesmo, generoso e afetuoso.
Mais ainda com as mulheres, claro. Nesse particular, ele tinha um modo muito próprio de se conduzir. A impressão que tenho é de que ele, quando surgia um novo amor, não pensava em nada, entrava de cabeça, sem ligar para as consequências prováveis. Nem no que dissesse respeito a ele nem à namorada que ia trocar pela nova.
Foi mais ou menos o que aconteceu em Buenos Aires, quando se enamorou de uma moça argentina uns 40 anos mais jovem que ele. E ainda teve o desplante de ir à casa dela para pedir aos pais permissão de namorá-la. É difícil imaginar que conversa foi aquela, mas a verdade é que o namoro continuou e, sem muita demora, a moça seguia com ele para o Rio de Janeiro.
Sucede que ele tinha uma namorada em Salvador --uma linda mulata-- que, ao saber do novo caso do poetinha, foi para o Rio, entrou na casa dele e fez um "serviço" na cama onde o poeta dormia, para fazer mixar o tesão pela argentina.
Se deu resultado, não sei. O certo é que, um ano depois, quando voltei para o Brasil, a argentina já tinha dançado, substituída por outra musa, ainda mais jovem.
Outro fato marcante dessa passagem de Vinicius por Buenos Aires foi o desaparecimento de Tenório Júnior, pianista de seu show. Ele dissera, no quarto do hotel, à namoradinha que viajava com ele, que ia à farmácia comprar um remédio. De fato, ia encontrar um cara que ficara de lhe vender cocaína. Saiu do hotel e não voltou mais.
Quando cheguei ao quarto de Vinicius, no hotel, estava todo mundo preocupado. Ele pedira a ajuda da embaixada brasileira para localizar Tenório e a resposta, que acabara de chegar, é que era impossível. O golpe militar havia sido desfechado há poucas semanas e a repressão atingia todas as áreas.
Foi então que dei um palpite. Disse a Vinicius que conhecia uma vidente argentina, que localizara meu filho quando sumiu da cidade; quem sabe, localizaria Tenório. Ele achou muito boa a ideia, mesmo porque não havia outra coisa a fazer.
Estavam ali a namoradinha de Tenório e Maria Julieta, filha do poeta Carlos Drummond, funcionária da embaixada brasileira. Informei que, para telefonar à vidente, teria que ir até meu apartamento, pois não tinha comigo o seu telefone. Fui acompanhado da namorada e de Maria Julieta e, chegando lá, telefonei para Dona Haydê, a vidente. Ela atendeu, ouviu o que eu lhe disse e perguntou o nome do desaparecido.
Ao ouvir o nome dele, sua voz mudou estranhamente. Depois de um longo silêncio, afirmou que Tenório deveria estar ou morto ou inconsciente, pois não conseguia comunicar-se com ele. Pediu dois dias para tentar localizá-lo, mas, antes de desligar, advertiu: "Diga a essa mocinha que está aí, que vá logo embora da Argentina, pois corre risco de vida". Como ela sabia que a garota estava ali?
Voltamos para o hotel, contei o que a vidente disse, e Vinícius, visivelmente preocupado, logo providenciou a volta da garota para o Rio, já que os pais dela nem sequer sabiam por onde e com quem ela andava.
Não esperei os dois dias pedidos pela vidente. Liguei no dia seguinte e ela me falou com aquela voz estranha: "A polícia bateu nele até matá-lo". Quando contei isso ao Vinicius, seus olhos se encheram de lágrimas. Tenório, quando saiu do hotel, levou consigo seus documentos. Os policiais, quando se deram conta de que haviam assassinado um músico brasileiro, deram fim nele. O corpo de Tenório Júnior nunca foi encontrado.
Fonte: Folha de S. Paulo / Ilustrada
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