- O Estado de S. Paulo
Afinal, perguntam Dilma Rousseff, Ruy Falcão, Michel Temer, Aécio Neves, Geraldo Alckmin e José Serra, qual é a jogada de Lula com essa história de que ele e a presidente estão no volume morto e o partido deles, mais abaixo ainda? Será uma crise de sincericídio? Será uma tentativa de pular fora do barco que está fazendo água? Ou apenas de se vingar da indiferença da criatura, que se cerca de velhos adversários do peito, como Aloizio Oliva e Eduardo Cardozo?Ou a mistura disso tudo com uma pitadinha do humor sacana, que lhe é peculiar?
Recentemente, em entrevista a Mino Carta e Gonzaga Belluzzo para a Carta Capital, o ex-presidente me desqualificou como autor do livro O que Sei de Lula alegando que não me conhece nem nunca me viu na vida. Pouco importa. Importa é que o conheço o suficiente para tentar decifrar esse enigma, de vez que ele não é propriamente uma esfinge, embora seja capaz de nos devorar a todos sem hesitação alguma.
Fui muito criticado por direitistas radicais e antipetistas neófitos por ter escrito no livro que ele é o maior político brasileiro da História, batendo o imperador bonachão dom Pedro II e o manhoso caudilho Getúlio Vargas. Talvez tenha chegado a hora de explicar que esse nunca pretendeu ser um elogio – ou pelo menos só um elogio. Ser um bom político, de modo geral, exige de qualquer prócer muitos talentos, algumas qualidades, pouquíssimas virtudes e pelo menos um defeito: mandar todos os escrúpulos às favas. O protagonista deste texto tem uma enorme capacidade de entender os humores da massa e fala a língua do povo como ninguém.
Sabe seduzir quem lhe interessa e descartar quem o atrapalha, tendo o dom de iludir. Seu adversário e aliado em horas diferentes, o também populista Leonel Brizola, dizia que para se dar bem ele seria capaz de pisar no pescoço da própria mãe. Lula nem precisou: dona Lidu morreu quando ele preparava sua escalada ao poder como preso político na ditadura. Renega seus erros e adota como dele acertos alheios.
Sua principal vantagem sobre os adversários não é a desfaçatez com que cinge na cabeça os louros deles, mas a difícil arte de fazer e influenciar amigos sem ter de abrir mão de suas convicções, já que nunca as teve mesmo.
Recorre a um sucesso do roqueiro Raul Seixas para traçar o melhor autorretrato de si próprio: “Prefiro ser uma metamorfose ambulante do que ter uma opinião formada sobre tudo”. Com perdão da má gramática, Lula nunca teve opinião formada sobre nada. E treinou a capacidade de seu cérebro de borracha em assembleias sindicais em São Bernardo, nas quais, em vez de conduzir a massa, se deixava conduzir pelos amores e ódios dela. Faz sucesso por nunca contrariar o senso comum.
Quando ele disse a bispos e pastores – e tinha a certeza de que suas palavras teriam a repercussão que tiveram, porque a provocou – que Dilma mentiu quando garantiu que não mexeria em conquistas dos trabalhadores nos ajustes nem assumiria a política dos tucanos, que adotou, sabia que ela não o contestaria. Essa aposta ele ganhou: a presidente afirmou que qualquer um tem o direito de depreciá-la, principalmente Lula, muito execrado por jornalistas. Ela mais uma vez chutou a lógica: só alguém de quem se fala mal pode censurar alguém? Para minha avó, “chumbo trocado não dói”. Mas não era o caso: Lula não criticou a presidente, mas a ofendeu chamando-a de mentirosa. Além disso, ela nunca tinha falado mal dele antes.
Rosângela Bittar, no Valor Econômico, citou a metáfora do “quarto de espelhos”, dando um caráter de autocrítica indireta à afirmação dele de que seu Partido dos Trabalhadores (PT) trocou “um pouco de utopia” por cargos públicos. Só omitiu o fato de o PT não estar sendo acusado de ser o “partido da boquinha” apenas por ter aparelhado a máquina estatal, mas também por ter comandado o maior saque ao erário da História da República.
Tanto a confissão aos religiosos quanto a “autocrítica” de outros perante o ex-presidente socialista da Espanha Felipe González resultaram, se eu não estiver enganado, da percepção que Lula tem da insustentável fragilidade de seu poste no poder e da incapacidade da oposição de dar à Nação resposta convincente ao fato inelutável.
Ele se lança como proposta de oposição ao que está aí, agindo como Ulysses Guimarães, que mandava e se opunha no governo Sarney. Pouco importa se o que está aí seja obra dele e de companheiros que ele içou ao poder, inclusive a roubalheira e a crise econômica resultante do consumismo usado como panaceia. Às favas com os fatos – é a paródia lulista à frase de Passarinho.
Pode-se argumentar que a aposta de Lula na amnésia generalizada do povo brasileiro é uma jogada arriscada demais para ele expor o próprio pescoço, agora que não dispõe mais do da mãe para subir na vida. Pode ser. O lance é ousado mesmo, mas não necessariamente suicida, ou melhor, sincericida. Não devemos esquecer que, no meio da crise geral de credibilidade de Dilma, do PT e talvez dele próprio (e ninguém o sabe melhor do que ele mesmo), pesquisa do Datafolha atribuiu a 50% dos brasileiros a convicção de que ele foi o melhor presidente da História. Lula afundou o “pai dos pobres”, Getúlio Vargas, ao inexpressivo patamar de 6%. E a rejeição a ele fez o índice do tucano Fernando Henrique alcançar 15% . Quem apostará numa mudança radical de opinião de metade dos brasileiros até a data da próxima disputa eleitoral, se esta será mais distante do dia em que deu posse ao poste que escolheu do que da época em que a pesquisa foi feita?
Essa cartada de Lula pode ter resultado incerto e, decerto, é desesperada. Pior: ele não tem alternativa a ela. Como corintiano de arquibancada, ele deve ter tomado a decisão de se tornar o líder de oposição com base naquele velho axioma: perdido por um, perdido por mil. Como tem tudo a perder, pode ser que o improvável seja o único jeito de vencer.
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*José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor
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