- O Globo
• Num processo de mistificação do passado a serviço da corrupção do presente, a doutora confundiu o STF com o DOI
Um dos enigmas do comportamento político de Dilma Rousseff está na sua capacidade de viver numa realidade própria. É a essa característica que se deve atribuir parte do descrédito que acompanha sua administração. Diz uma coisa, faz outra e vai em frente. Recuando quase meio século na história do país para manipular os desdobramentos da Operação Lava-Jato, a doutora afirmou o seguinte:
“Eu não respeito delator, até porque estive presa na ditadura militar e sei o que é. Tentaram me transformar numa delatora. A ditadura fazia isso com as pessoas presas e garanto a vocês que resisti bravamente”.
Mistificando o presente, associou o comportamento de quem passa pela carceragem de Curitiba com o dos presos do DOI durante a ditadura. Seu paralelo ofende o Ministério Público, o Judiciário e o Supremo Tribunal Federal, que homologa cada um dos acordos onde estão as confissões. Nenhum preso da Lava-Jato passou por qualquer constrangimento físico. Até agora, todos os atos praticados pelos investigadores respeitaram o devido processo legal.
Deixando-se essa questão de lado, o que não é pouca coisa, vai-se ao coração da fala: “Eu não respeito delator". Num lance de autoexaltação, lembrou que “resisti bravamente". Ela sabe que o comportamento de um preso sob tortura nada tem a ver com sua bravura. Relaciona-se apenas com o caráter do torturador e do regime a quem ele serve. Quem fala sob tortura não é delator, é apenas um cidadão torturado e a doutora respeita muitos deles. Dilma Rousseff, a “Wanda” do Comando de Libertação Nacional, sabe que o “Kleber” não foi um delator. Em 1969, depois de ter sido torturado por vários dias, ele indicou para a polícia o endereço de um aparelho da Rua Atacarambu, em Belo Horizonte, onde estavam sete de seus companheiros. Dos milhares de presos torturados durante a ditadura, talvez não tenham chegado a uma dezena aqueles que, livres, continuaram colaborando com os agentes da repressão. Se os acusados que estão colaborando com a Lava-Jato são mentirosos, não merecem respeito e seus acordos devem ser cancelados. Insultá-los leva a lugar nenhum.
Misturar empreiteiros milionários com militantes torturados é um truque que desmerece o estado de direito e o regime democrático de hoje. Nas palavras de um ministro do governo Médici, referindo-se aos presos de seu tempo, “a delação, para eles. é o supremo opróbrio". Outro hierarca elaborou o lance seguinte: os presos, tendo delatado, justificavam-se inventando que haviam sido torturados. Donde, não havia tortura, mas delatores. No paralelo de Dilma não haveria roubalheiras, mas delatores que não merecem respeito.
Há ainda outra diferença entre os presos que eram torturados nos DOI e os que passam pela Lava-Jato. Uns sequestravam diplomatas, assaltavam bancos e roubaram o cofre onde a namorada de um ex-governador de São Paulo guardava dois milhões de dólares, parte dos quais vindos de empreiteiras. Seus alvos faziam parte do arco de interesses que todos, inclusive a doutora, pretendiam destruir. Nenhum deles pensava em aumentar seu patrimônio. Os empreiteiros da Lava-Jato buscavam o enriquecimento pessoal e o PT enfiou-se nesse mundo de pixulecos porque quis.
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Elio Gaspari é jornalista
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