Em duas semanas de governo Jair Bolsonaro, ficou claro que o novo chanceler, Ernesto Araújo, quer promover um rodopio de 180 graus na política externa brasileira, rompendo com alguns dos princípios que têm guiado a presença internacional do país. Esses princípios, que constituem também bases operacionais da política externa, incluem a valorização do multilateralismo, o respeito ao Direito Internacional e a prática de tentar manter boas relações com praticamente todos os países do mundo. No lugar dessa política externa tradicional, Araújo, segundo pode se depreender de seu intrincado e confuso discurso de posse no Itamaraty, quer promover outra que seja a expressão de uma forte identidade nacional.
O fortalecimento da identidade brasileira, de acordo com o pensamento do chanceler, passaria pela recuperação de valores baseados em Deus, na nação ena família e pela rejeição do “globalismo” pelo Itamaraty. O “globalismo” é como Araújo e outros seguidores, aqui no Brasil, do polemista ultratradicionalista Olavo de Carvalho batizaram o que eles chamam de um projeto político de imposição de um governo mundial pela ONU, pelas ONG se por diferentes governos considerados progressistas. Com suas pautas de defesa do feminismo, do ambientalismo, da abertura das fronteiras às migrações, o “globalismo”, segundo a visão defendida com fervor missionário por Araújo — o que já lhe valeu no Itamaraty o apelido de Beato Salu —, estaria corroendo os tradicionais valores judaicocristãos que fizeram a grandeza do Ocidente.
Há vários problemas nessa guinada no Itamaraty. Uma política externa consistente e eficiente deve buscar objetivos de longo prazo para o país, o que recomenda que ela seja previsível e executada com prudência e pragmatismo. Como observou recentemente o cientista político Guilherme Casarões, da Fundação Getulio Vargas, ninguém mais tem certeza sobre como o Brasil de Bolsonaro e Araújo jogará no tabuleiro mundial. O discurso ultraconservador do novo chanceler, que colocou o Brasil no mesmo eixo político de democracias iliberais como a Hungria e a Polônia, com as quais temos pouquíssimos pontos em comum, já está custando danos à reputação e à imagem do Brasil no exterior e poderá ter consequências políticas negativas.
O país poderá sofrer também com custos econômicos. Bolsonaro parece querer emular o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em tudo. Copia Trump não só na atividade intensa nas redes sociais, mas também no ataque à ONU e à ordem internacional, na defesa estridente de Israel e nas críticas à China. Ainda a maior potência econômica e militar do mundo, apesar da crescente sombra que a China começa a lhe fazer no cenário internacional, os EUA são capazes de suportar, sem danos irremediáveis, a diplomacia errática de Trump, equiparado à salvação para o Ocidente por Araújo — outra bizarrice, vinda de um chanceler. O Brasil, potência média, sem força militar e com economia repleta de vulnerabilidades, não pode fazer o mesmo jogo dos EUA, pois depende da ONU, do Direito Internacional e do multilateralismo para fazer avançar seus interesses na arena internacional, onde quem costuma ter a força impõe as próprias regras.
Uma atitude subserviente em relação aos EUA pode ser boa para os americanos, mas não para o Brasil, cada vez mais dependente dos investimentos e das compras dos produtos nacionais pelos chineses. A história registra como o Brasil, em outros momentos em que se alinhou aos EUA, se frustrou na expectativa de benesses, que não vieram, apesar das concessões feitas. As tradições da diplomacia brasileira foram construídas ao longo do tempo por uma burocracia competente e profissional formada na escola do barão do Rio Branco. Seria melhor para o país que Araújo as revisitasse com cautela, em vez de tentar reinventá-las sob o farol de Olavo de Carvalho, um grande sofista que nada sabe de relações internacionais.
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