quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Roberto DaMatta* - A volta do velho

 

O Estado de S. Paulo / O Globo

Descobrir sobre o que escrever é a dúvida letal dos que vivem escrevendo e escrevem para viver

Depois de exatas quatro semanas fora dos jornais, e com inevitáveis e bem-vindos 85 anos, volto a enfrentar o doloroso infinito dos assuntos, pois cada crônica é uma resposta ao sobre o que escrever.

A escrita como dimensão básica da linguagem humana (escreveu, não leu, o pau comeu!) permite armazenar o mundo. Nasceu, dizem, na Suméria, e tem sido essencial na fabricação de mandamentos e cláusulas pétreas, essas normas doadas por deuses, reis e juristas para os mortais - de cima para baixo, de fora para dentro. A escrita inventa a linearidade histórica e estampa as notícias desse jornal. Um dos seus mistérios: nos dar uma consciência da língua portuguesa e, com ela, de nós mesmos. A língua, como dizia Fernando Pessoa, é solo e pátria. Somos nós que a falamos ou é ela que fala por nós? 

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Descobrir sobre o que escrever é a dúvida letal dos que vivem escrevendo e escrevem para viver. A literatura não admite diletantes quando reinventa a vida conforme reza o código de honra dos autores.

Sentado, pois, diante da tela-papel do meu computador, me confronto com uma consciência pintada de branco. Esse “branco” que qualifica a impotência dos que se sabem inventados e inventores por um idioma. Esse bando de contadores de histórias que ajudam a ver a nossa maior contradição: o de poder escrever sobre tudo, exceto sobre a nossa morte. Talvez a glória do ato de escrever esteja na sensação de morrer quando o texto termina e de reviver quando começamos uma crônica - um episódio que engane o peso de estarmos todos a um passo da eternidade e do esquecimento. Essa inexorabilidade que os estúpidos nem sequer cogitam, mas que - com o perdão do trocadilho - na sua verdade mortal constitui um brutal desafio porque sabemos muito do morto, mas nada da morte. Ela que, vejam o tamanho da cambalhota, iremos viver ao morrer. 

Não é por acaso que a virgindade da morte seja o estímulo para a especulação intelectual. 

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Morreu José Arthur Gianotti, um exemplar filósofo na casa de quem, um dia, jantei excelentes bifes tártaros, sua especialidade culinária, com Ruth Cardoso e Eunice Durham. Sua frase mais célebre ocorreu no governo de FHC, de quem foi amigo: “Nunca pensei que meus colegas detestassem tanto a profissão que escolheram”, desabafou. 

A advertência revela a decepção com o sistema universitário. Mas sabemos como é difícil resistir ao patriótico chamado do Brasil em nome do qual tudo é permitido.

Ademais, conforme descobri quando menino, se o dinheiro é de todos, é lógico que os seus administradores e delegados, enganosamente chamados de “representantes”, tenham o direito legal de distribuí-lo para seus parentes e “bases”. Se assim não for, outros irão fazê-lo, pois roubar é crime somente para os comuns. Para os eleitos, o assalto moleque aos recursos públicos vale até na pandemia. 

Aliás, como não “arrumar-se” se há uma imutável legislação desenhada para privilegiar os “defensores do povo” que viram barões, reis (e “mito”) protegidos por uma legislação que os cobre de privilégios? - de leis particulares que os isenta de culpa?

Nesse “Estado-Casa-Grande” de um Brasil que experimentou todos os regimes políticos, só evitamos cuidadosamente uma representação mais igualitária e menos familística e sectária. 

Uma representatividade capenga, conforme viram Joaquim Nabuco, Antonio Paim, Raymundo Faoro e alguns outros, tem engendrado partidos que representam a si mesmos. E, pasmem, como mostra José Paulo Cavalcanti Filho num artigo publicado no Jornal do Comércio, de Recife, há um bilionário “fundo partidário” pronto a consagrar novos aristocratas.

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Sem assunto, lembro-me de uma fórmula conhecida dos jornalistas americanos que me foi enviada pelo correspondente Mac Margolis:

“O que causa ansiedade em escritores: não escrever/ escrever. Quem lê o que escrevem. Rever o que escrevem/não rever o que escreveram. Não ter boas ideias/ter muitas ideias, mas não ser capaz de decidir escrevê-las. Ter uma grande ideia e preocupar-se que ela não é boa o suficiente para escrevê-la. Não ter tempo para escrever/ter tempo para escrever. Não ser resenhado/ receber 999 resenhas e uma daquele f.d.p. que disse que o título do que foi escrito era muito grande.”

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No Japão, a Olimpíada produz mil assuntos. O esporte desmancha campeões e hierarquias. Ele produz novos heróis e eventos a partir de estruturas. Num sentido preciso, o esporte desafia e transtorna raças e tipos. Nele, não há recursos legais, nem segundas instâncias. Seu ideal de igualdade é o oposto do que ocorre na vida política nacional.

Belo assunto para uma coluna, mas, como diria Kipling, isso é uma outra história...

*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’

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