O Globo
Política quase nunca é feita de boas
intenções. Ela é praticada em bases bem mais pragmáticas que isso. A falta de
apoio do Congresso à obsessão de Jair Bolsonaro pelo voto impresso, portanto,
não se deve a nenhuma consciência por parte dos parlamentares de que é preciso
zelar pela democracia, mas ao fato de eles considerarem essa cruzada uma
bobagem e saberem que a urna eletrônica é segura — afinal, foram eleitos por
ela.
Assim sendo, melhor gastar tempo, energia e
conchavos com as próprias prioridades, em vez de se engajar na de Bolsonaro.
Eis que no minuto 1 da volta do recesso se materializa na Câmara, pronto para ser enfiado goela abaixo da sociedade, um calhamaço de mais de 900 artigos revogando toda a legislação eleitoral e, sob o pretexto de unificar tudo num Código Eleitoral, aproveitando para passar um tratoraço na fiscalização do uso de dinheiro público para campanhas e para o custeio dos partidos e para censurar as pesquisas, entre outras atrocidades.
O projeto patrocinado pelo presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e assinado por uma correligionária, a deputada
Margarete Coelho (PP-PI), é mais um exemplo de um expediente que vai se
tornando corriqueiro na Câmara sob o comando do deputado alagoano: os projetos
surgem do nada e são rapidamente votados, para que não dê tempo de a imprensa
denunciar todos os seus aspectos e de a sociedade se articular.
É, também, uma mostra de por que Lira se
mantém impávido segurando qualquer pedido de impeachment de Bolsonaro, não
importa o que ele faça: ele já comanda uma fatia expressiva do Orçamento,
colocou dois aliados no Planalto e vai aprovando medidas (fundão eleitoral,
mudança na lei de improbidade administrativa e, agora, o Código Eleitoral do
vale-tudo) de sua agenda pessoal sem ser importunado pelo Executivo. Manda na
pauta da Câmara, a despeito do gasto sem precedentes feito pelo governo
Bolsonaro (e o fim da mamata?) com agrados ao Centrão.
A reforma na legislação eleitoral proposta
pela porta-voz de Lira usa do mesmo negacionismo propalado por Bolsonaro em
relação às urnas eletrônicas para censurar a divulgação de pesquisas às
vésperas do pleito. Quer que institutos divulguem uma tabela de acertos (!) em
levantamentos anteriores, ignorando a obviedade estatística de que pesquisas
são fluidas, mostram tendências e que, principalmente no Brasil, algumas
eleições apresentam curvas que se modificam às vésperas das eleições.
Em relação aos gastos dos cada vez mais
fornidos fundos públicos, o partidário e o eleitoral, a regra na reforma de
Lira é o libera geral: até transporte de eleitor passará a ser passível apenas
de multa.
Mecanismos para garantir equidade na
distribuição desses mesmos recursos, como a determinação de que mulheres e
negros sejam contemplados de forma proporcional, vão para as cucuias.
A Justiça Eleitoral perderá mecanismos para
aprovar resoluções que disciplinem as eleições e terá menos tempo para analisar
prestações de contas de campanha. E ainda cabe muita bizarrice em 372 páginas
feitas sob medida para perpetuar os mesmos, graças a muito dinheiro público, e
para impedir renovação de fato na política.
A presença de Arthur Lira no comando da
Câmara é um desses legados deletérios do bolsonarismo para as instituições. Sob
seu comando, ainda que haja soluços pragmáticos, como a reação às ameaças de
Braga Netto ou o enterro da PEC do voto impresso, eles sempre se darão sob a
lógica de que há outra agenda, igualmente contrária ao interesse público e ao
aprimoramento do processo democrático, à espreita.
Pobre do país que tem de se fiar num Congresso comandado por interesses desse tipo para (quem sabe) frear os pendores golpistas de um presidente da República disposto a tudo para se manter no poder.
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