Valor Econômico
Pressão por reajuste de servidores
evidencia distorções
Jair Bolsonaro abriu a caixa de Pandora. Ao
decidir conceder um reajuste salarial para policiais federais, despertou a
inveja, a cobiça e o ciúme das demais carreiras do topo do serviço público
brasileiro. Imediatamente, auditores da Receita entregaram seus cargos
comissionados, assim como associações de servidores anunciam para janeiro uma
paralisação dos trabalhos.
Existem inúmeras razões para se pagar bem
aos empregados do Estado. Altos salários atraem bons profissionais, o que em
tese melhora a qualidade dos serviços prestados. Um corpo técnico bem
remunerado, também na teoria, é menos propenso a ser capturado pelos interesses
do setor privado ou por políticos poderosos, protegendo as políticas públicas
dos vícios do patrimonialismo, do lobby ou da corrupção pura e simples.
No Brasil, porém, bons princípios são sempre distorcidos pelo corporativismo e utilizados para justificar o injustificável.
O economista Roberto Macedo foi um dos
primeiros a mergulhar nos dados e a comparar, com rigor estatístico, as
diferenças salariais entre o setor público e privado no Brasil. Coletando
informações de centenas de milhares de trabalhadores de companhias estatais e
particulares em 1981, e controlando os testes econométricos segundo setor da
economia, gênero, idade, escolaridade, ocupação e anos de experiência dos
trabalhadores, o professor da USP constatou que os empregados nas estatais
ganhavam quase o quádruplo do que os do setor privado, e que uma parcela
expressiva dessa diferença (entre 26% e 83%, a depender da ponderação) não era
explicada pelos perfis distintos da mão de obra entre os dois segmentos. Havia,
portanto, um robusto prêmio salarial pago aos empregados públicos simplesmente
porque eles eram... empregados públicos.
Desde o trabalho pioneiro de Macedo,
dezenas de pesquisas vêm reforçando a mesma constatação: servidores públicos
ganham mais do que trabalhadores do setor privado, mesmo descontando as
características pessoais (sobretudo de escolaridade e experiência de trabalho)
entre eles. Esses resultados não levam em conta, ainda, o mais generoso dos
benefícios indiretos: a estabilidade no emprego. Isso, como o velho comercial
dizia, “não tem preço”.
Mas há servidores e servidores. Aqueles que
estão na ponta do atendimento ao cidadão, como professores da educação básica
ou técnicos de enfermagem nos centros de saúde, recebem, em média, menos do que
seus pares do setor privado. Mas quando se avança para os cargos burocráticos
de mais alto nível, a desigualdade muda de direção.
Advogados públicos, fiscais da Receita,
gestores governamentais, auditores do Tesouro e da CGU, diplomatas, analistas
do Banco Central, pesquisadores do Ipea e policiais federais constituem a elite
do Poder Executivo Federal.
Esses servidores, logo após aprovados em
concurso, já começam a receber entre R$ 19.197,06 (no caso das carreiras do
ciclo de gestão) e R$ 21.020,09 (fiscais e advogados públicos). Os delegados da
Polícia Federal, que pressionam Bolsonaro por aumento, têm remuneração inicial
de R$ 23.692,24.
Esses vencimentos, para o começo de
profissão, são muito superiores a seus equivalentes no setor privado. Apenas em
termos de comparação, um advogado júnior num dos maiores escritórios de São
Paulo ganha em torno de R$ 6 mil mensais, assim como um gerente de auditoria
numa das “big four” (Deloitte, E&Y, KPMG e PwC) recebe em torno de R$ 8 mil
por mês, segundo o site Glassdoor.
Além de começarem ganhando muito bem, as
carreiras na elite do Poder Executivo federal são curtas. Em tese, um gestor
público ou auditor de finanças e controle chega ao topo em 13 anos - e para
chegar até lá não há um processo rigoroso de avaliação de desempenho. Assim, em
pouco tempo os servidores da elite federal estão recebendo entre R$ 27,3 mil
(carreiras de gestão, do Tesouro e da CGU) e R$ 30,9 mil por mês (os delegados
da PF).
Mas desde que se estabeleceu que o teto do
serviço público é a remuneração dos ministros do STF (R$ 39,2 mil), essa passou
a ser a meta da elite do funcionalismo.
As carreiras com maior poder de pressão
tentam chegar lá por meio de novos penduricalhos. Os auditores da Receita que
acabaram de entregar os cargos e realizam “operação padrão” pleiteiam que seja
ampliado o seu “bônus de eficiência e produtividade” - o nome é uma ironia,
pois se trata de um extra de R$ 3 mil mensais que hoje é distribuído igualmente
a todos (inclusive aposentados!). A vida dos advogados da União é ainda melhor:
depois que conseguiram contrabandear um dispositivo no Código de Processo
Civil, eles vêm recebendo um adicional (os famosos “honorários de sucumbência”)
que passou de R$ 10 mil mensais em 2021 (também estendido aos inativos).
Como os salários no Brasil são irredutíveis,
só há duas formas de trazer esses rendimentos para próximo da realidade.
Para os servidores atuais, não há muito o
que ser feito: apenas resistir aos pleitos de reajuste, e deixar que a inflação
corroa seu valor real até que eles se equiparem aos níveis de cargos com igual
nível de qualificação e responsabilidade observados no setor privado. É o que
vinha sendo feito desde a adoção do teto de gastos, até Bolsonaro passar a
desrespeitá-lo sistematicamente.
Para os futuros servidores, há uma agenda
de reformulação importante a ser implantada: racionalização dos cargos, com a
unificação de atribuições e competências, redução do salário de entrada para
níveis compatíveis com postos semelhantes no setor privado, alongamento das
carreiras, adoção de avaliação de desempenho periódica, reestruturação
remuneratória (com uma parte fixa, porém baixa, e outra variável de acordo com
as metas cumpridas) e a regulamentação da demissão por insuficiência de
resultados.
No mito narrado por Hesíodo, após ver que
todo tipo de mal estava saindo do jarro que lhe foi confiado por Zeus, Pandora
se apressou em tentar fechá-lo para minimizar os danos. Mas já era tarde
demais; só havia restado a Esperança. Se o efeito cascata do aumento para a
elite do funcionalismo se comprovar, nem ela resistirá.
*Bruno Carazza é mestre em
economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as
engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário