Valor Econômico
O impulso fiscal, que já decaiu bastante em
2021, deve ser negativo em 2022, apesar dos gastos adicionais com a aprovação
da PEC dos precatórios
A última ata do Copom foi lida pelo mercado
como bastante “dura”. Sobre a economia, apesar das seguidas frustrações dos
últimos dados, o BC alega que isso mostra somente um nível de atividade
“ligeiramente abaixo do esperado”. A inflação “segue elevada”, e
“questionamentos” e “desenvolvimentos” sobre o arcabouço fiscal fizeram o Copom
assimilar esses riscos em suas projeções, que agora se encontram acima da meta,
tanto em 2022, como em 2023. Assim, o Banco Central deve “perseverar” em
avançar “significativamente em território contracionista” na sua postura
monetária.
Com a inflação rompendo dois dígitos, a
postura do Copom parece ser muito justificada, e foi muito elogiada no mercado,
que também, reflexivamente, aumentou suas projeções para a taxa Selic.
O único problema é que a inflação de hoje é uma janela no passado. Fora a questão da inércia, o que vale para a inflação futura são seus fatores condicionantes de hoje.
Um importante componente do processo
inflacionário que estamos vivendo veio da reabertura permitida pelo milagre do
final de outubro do ano passado, em que teríamos vacinas com alto grau de
eficácia contra a covid-19. Não devemos esquecer como isso foi uma grande
surpresa, e que aconteceu apenas sete meses depois do início da pandemia.
Mas o milagre gerou um problema: as
agressivas políticas fiscais e monetárias sendo aplicadas naquele momento
somente faziam sentido em um cenário de continuidade do estado semifechado e
debilitado em que se encontrava a economia global.
Isso passou despercebido pelos bancos
centrais, inclusivo o nosso. Na ata da reunião de dezembro de 2020, o Copom até
reconhece “os resultados promissores nos testes das vacinas conta a covid-19”,
mas apesar disso e de “leituras de inflação acima do esperado”, a conclusão foi
que os “choques atuais são temporários”. Vale notar que a expectativa de inflação
da pesquisa Focus para 2021 foi de 3,3%.
Qual era o estado dos fatores
condicionantes da inflação naquela virada de ano? O ponto de partida era uma
inflação ao redor de 4,5%, já apresentando uma boa aceleração. O nível de
atividade econômica, medida pelo IBC-Br, já apontava para uma recuperação em V,
com o índice de dezembro subindo 0,71% e o de janeiro 1,25% mês/mês.
Todo o processo inflacionário precisa de um
choque primário, um “impulso” inicial. Em dezembro de 2020 o índice de preços
ao atacado (IPA) estava subindo 31,6% ano/ano. O dólar mostrava variação
interanual de 28,9%, apesar da forte melhora nos nossos termos de troca com a
alta generalizada dos preços das commodities, quebrando um padrão histórico.
Todo o processo inflacionário também precisa
de condições que permitem a difusão dos choques primários, algo que pode ser
mensurado pela postura das políticas monetárias e fiscais, como as condições
financeiras em geral.
Na virada de 2020 a taxa Selic estava em
2%, o que seria uma taxa real negativa tanto usando a inflação daquele momento
como as expectativas do Focus. O mercado futuro projetava uma Selic de somente
4,5% no final de 2021. O índice de condições financeiras para o Brasil
calculado pelo nosso economista-chefe na WHG, Fernando Fenolio, estava nos
mesmos níveis de 2019. Nosso cálculo do impulso fiscal positivo durante 2020
chegou a 20% do PIB.
Como estão esses mesmos condicionantes
hoje? O IBC-Br de outubro caiu 1,48% ano/ano, ou -0,4% em relação a setembro, o
quarto mês de quedas. Notamos que as previsões de crescimento econômico para
2022 caminham para o território negativo. O IPA está em 20,5% ano/ano, mas sua
média móvel de três meses anualizada está em zero. O dólar, apesar das altas
recentes, mostra uma variação interanual de somente 5,4%.
Em termos da postura monetária, temos hoje
uma Selic voltando a dois dígitos, e a última ata reforça as previsões de uma
Selic terminal entre 11-12%. Dadas as expectativas de inflação do mercado, isso
representaria uma taxa real de juros entre 5% e 6% para o final de 2022, o
mesmo patamar de 2015. Hoje, o índice de condições financeiras se encontra no
mesmo patamar de aperto que no auge da pandemia. O impulso fiscal, que já
decaiu bastante em 2021, deve ser negativo em 2022, apesar dos gastos adicionais
com a aprovação da PEC dos precatórios.
Dados esses fatos, e reconhecendo que
certamente não há opção responsável senão ter uma postura monetária restritiva
para desinflacionar a economia, por que, neste momento, avançar muito mais em
território “significativamente contracionista”?
As razões mais citadas por aqueles que
aplaudem a postura atual do BC seria uma mistura (e a interação) de inércia e
desancoragem das expectativas, esse último causado pela suposta perda da âncora
fiscal com as recentes decisões sobre a regra do teto dos gastos.
Como vimos acima, o impulso fiscal atual é
contracionista. Desta forma o efeito inflacionário das recentes decisões
legislativas tem que passar por um suposto aumento da taxa neutra de juros,
variável não-observável e de dificílima estimação até em economias maduras e
menos voláteis que o Brasil.
E as expectativas de inflação? Se elas
expressarão, como projeções, um estado de desequilíbrio duradouro, elas
certamente têm seu valor preditivo. Um caso recente foi a taxa de desemprego
abaixo do nível neutro que gerou persistente pressão na inflação de serviços
entre 2011 e 2015. Mas como ponderar sua importância quando as expectativas são
expressão não de um desequilíbrio fiscal existente, mas sim uma projeção de
como a política vai impactar toda a futura trajetória fiscal, especialmente
quando há uma eleição em menos de um ano?
Com isso, ao nosso ver há um sério risco de
o BC executar uma política “significativamente contracionista” cometendo, com
sinal trocado, o erro que foi cometido no final de 2020, e causar uma queda
desnecessária da atividade para assegurar a convergência da inflação para a
meta em 2023, única opção viável neste momento.
Minha esperança é que o Banco Central está,
nesta última decisão, aplicando o princípio da ambiguidade estratégica,
adotando uma postura condicional que pode ser revertida quando, com suas
devidas defasagens, os fatores condicionantes de hoje se manifestarem nos
índices de inflação, até se de forma incipiente. Espero isso pelo bem da nossa
já muito fragilizada economia e sociedade.
*Tony Volpon é estrategista
chefe da WHG e autor de 'Pragmatismo com Coação: petismo e economia em um mundo
de crises', da Alta Books.
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