“Jesus nasce perto dos esquecidos das periferias. Ele vem para enobrecer os excluídos e primeiro se revela a eles, não a pessoas instruídas e importantes, mas aos pastores e aos trabalhadores pobres.”
(Papa Francisco)
Tenho uma lembrança nítida da noite do
Natal desde os meus sete anos até os catorze anos de idade, quando conclui o
curso Ginasial, que corresponde hoje da quinta à nona série do Ensino
Fundamental. Após o Ginásio fui estudar em Fortaleza, a capital do estado, num
colégio interno, porque na minha cidade, Ipu, no Ceará, ainda não existia o
Ensino Médio.
O colégio pertencente à Congregação de São
Vicente de Paulo, uma ordem religiosa católica francesa, era dirigido por
freiras Irmãs de Caridade, aquelas que usavam um chapéu chamado corneta, muito
usado pelas senhoras parisienses em 1801 (The Times) mantidas como parte de
suas vestimentas, o hábito, até a idade contemporânea. Estudara em colégios
dirigidos pelas irmãs de caridade desde o Jardim de Infância até o terceiro ano
do Magistério, o curso que formava professores para o Ensino Primário.
Então, vivenciei o Natal como uma festa
tradicionalmente religiosa e mágica, o que penso contribuiu para moldar a minha
personalidade no que chamo hoje um longo processo de resiliência vivenciado
durante 77 anos, completados amanhã, 28.
A cidade inteira se preparava para a festa de Natal que acontecia nas Igrejas católicas e nas residências.
Naquela época, década de 1950, não havia
igrejas evangélicas no Nordeste, As anglicanas surgiram em 1851 em Recife e
Salvador, mas somente se consolidaram a partir de 1962, quando surgiu a
primeira Igreja Pentecostal. Também nessa época foi organizada a Conferência do
Nordeste com o tema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro,” o que
resultou numa série de discussões sobre as ações que antecederam o golpe
militar de 1964.
Segundo Rui Luís Rodrigues, a interpretação
religiosa da história, política à época, “deu sanção religiosa a um regime que,
em nome do combate à “ameaça comunista”, suprimiu liberdades individuais,
prendeu ilegalmente, torturou e assassinou pessoas (e é importante lembrar que
as torturas começaram já em 1964, não esperando pelo “endurecimento” da
ditadura após dezembro de 1968). Um regime que, em nome do combate à corrupção,
introduziu o Brasil numa fase de corrupção desenfreada, conquanto mascarada
pela subserviência dos meios de comunicação. Um regime que, ao longo de seus
vinte e um anos de existência, ampliou e aprofundou as já então enormes
desigualdades sociais existentes em nosso país”. (in As Igrejas Evangélicas
Brasileiras e o Golpe de 1964-Algumas Reflexões)
O Natal da minha infância era organizado na
forma mais tradicional e conservadora do catolicismo. As missas eram celebradas
à meia noite, em latim, com o padre de costas para o público. O padre lia todas
as homilias e o coro instalado na parte superior à entrada da igreja entoava os
cantos religiosos também em latim. Lindos! Pois eram fundamentados nos cantos
gregorianos, com origem nas tradições judaicas.
O objetivo era cada vez mais intensificar o
espírito de humildade e crença na história da Bíblia que conta a história do
nascimento e vida da criança que viria a ser Jesus, o Salvador da humanidade de
todos os seus pecados.
Todos nós acompanhávamos os cantos, em
latim, repetindo o som das palavras, mas sem saber o significado, com exceção
de alguns jovens que já estudavam latim nos colégios religiosos e dominavam
algumas declinações, a forma como se organiza a língua.
Na concepção do catolicismo, religião
dominante à época, éramos todos pecadores, pois já nascíamos trazendo conosco o
pecado original, por isso a necessidade de batizar as crianças logo que nasciam
para livrá-las da herança da culpabilidade imposta pelo ato de Adão e Eva.
Só quando saí para estudar na capital do
Estado e interagi com outros conhecimentos, analisando os fatos e atitudes das
pessoas na sociedade, compreendi que os pecados não eram subjetivos, eram
perdoados pelas promessas feitas nos confessionários, mas nada significava, continuavam
pecando da mesma forma. Poucos eram os imaculados, probos, honestos e dignos.
Na verdade, os pecados eram
bem objetivos e se manifestavam através da opressão e dominação historicamente
conhecidas.
Durante a missa do Natal havia uma
exigência que todos se vestissem de branco, significando a pureza, e as pessoas
deveriam comungar. As que não o fizessem eram objeto de conversas nas calçadas
no dia seguinte. Certamente estariam em estado de pecado.
Na cidade sabíamos quem eram
os “eternos pecadores”, os boêmios que saiam pela rua tocando violão, eram
muitos, conquistando mulheres, mesmo as casadas, bebendo cachaças e conhaques.
As mulheres que moravam na região da cidade denominada como zona de meretrício
eram pecadoras eternas. Só podiam ir ao comercio fazer suas compras de
mantimentos diários, após às 9h, horário estabelecido pela polícia, para que
não encontrassem as famílias de bem que faziam suas feiras logo ao amanhecer.
No Natal as casas da cidade geralmente
tinham as suas lapinhas, os espaços onde se colocavam os presépios com muita
decoração, alguns com riachos, pequenas cachoeiras caindo das pedras,
verdadeiras obras de arte que nos cobriam de encanto quando pensávamos na
beleza do nascimento daquele menino Jesus.
Havia até um uma pessoa que se chamava
Raimundo Lapinha, porque era um especialista na decoração de lapinha das
Igrejas e das famílias mais ricas. Todos o tratavam com muito carinho, mas com
algum preconceito por entender que era homossexual, obviamente, ‘um pecador’. Um belo dia, Raimundo
se encantou por uma mulher com quem se casou e tiveram 12 filhos, como grande
parte das famílias cearenses da época.
As festividades de Natal sempre tiveram
essa grande centralização religiosa, da busca da salvação, do perdão, da crença
no mistério da encarnação do filho de Deus, a forma encontrada por Roma para
dar liberdade de culto aos cristãos por volta do século 3. Segundo alguns
historiadores, ”os primeiros dados históricos relativos à festa do nascimento
de Jesus Cristo remontam ao ano 336, em Roma”. (comshalom)
Daí para a frente o mundo inteiro abraçou o
Natal que é considerado como a maior festa da cristandade, quando o momento
seria reservado a maiores reflexões sobre a passagem dos seres humanos pela
terra
Não se pode negar que também se transformou
numa grande festa do mercado, momento que privilegia o consumo desenfreado
através do qual e que cada vez mais se destacam as desigualdades entre as
pessoas.
Neste Natal de 2021, o Papa Francisco
lamentou que estejamos atualmente acostumados com as grandes tragédias que
passam despercebidas e em silêncio. Pediu pelos imigrantes, pelas mulheres que
padecem da violência de gênero, pela proteção do meio ambiente para que as
gerações futuras possam viver bem. Falou que pessoas indiferentes aos pobres ofendem
a Deus e reforçou a necessidade do diálogo entre as pessoas, e sobretudo entre
os governantes deste planeta terra. Conclamou que houvesse soluções adequadas
para superar a pandemia e suas consequências.
Em suas redes sociais reforçou o verdadeiro espírito cristão do Natal.
No Brasil, o Natal de 2021 foi de muita
solidariedade. Os pobres ajudaram os mais pobres, cuidando da fome que permeia
os lares de cerca de 41% da população brasileira, ou 84,9 milhões de pessoas
que convivem com fome ou algum grau de insegurança alimentar. Os números são da
Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgados pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE).
*Mirtes Cordeiro é pedagoga.
Nenhum comentário:
Postar um comentário