O Estado de S. Paulo
O divertido encenador de pantomima
necessita do palco compartilhado com algum Pierrot
Malandro, preguiçoso, astuto e dado a ser
fanfarrão: eis a figura do Arlequim. Ele surge com sua roupa de losangos no
teatro popular italiano (commedia dell’arte). Sedutor, ele tenta roubar a
namorada do Pierrot, a Colombina. Vejo que meu texto começa a parecer marchinha
saudosista de carnaval...
Há certa dignidade na personagem. Cézanne e
Picasso usaram seu talento para representá-lo. O espanhol foi mais longe:
retratou seu filho Paulo em pose cândida e roupa arlequinesca. Joan Miró criou
um ambiente surrealista com o título Carnaval do Arlequim.
Ele seduz porque é esperto (mais do que
inteligente), ressentido (como quase todos nós), cheio de alegria (como
desejamos) e repleto de uma vivacidade que aprendemos a admirar na ficção,
ainda que um pouco cansativa na vida real. Como em todas as festas, admiramos o
palhaço e, nem por isso, desejamos tê-lo sempre em casa.
Toda escola tem arlequim entre alunos e professores. Todo escritório tem o grande “clown”. Há, ao menos, um tio arlequinal por família. Pense: virá a sua cabeça aquele homem ou mulher sempre divertido, apto a explorar as contradições do sistema a seu favor e, por fim, repleto de piadas maliciosas e ligeiramente canalhas. São sempre ricos em gestos de mímica, grandes contadores de causos e, a rigor, personagens permanentes. Importante: o divertido encenador de pantomimas necessita do palco compartilhado com algum Pierrot. Sem a figura triste deste último, inexiste a alegria do primeiro. Em toda cena doméstica, ocorrem diálogos de personagens polarizadas, isso faz parte da dinâmica da peça mais clássica que você vive toda semana: “almoço em família”.
O ator manhoso sabe que podem existir
algumas recriminações diante de uma piada feita com a tia acima do peso ou com
o tio falido. Todos queremos nos imaginar bons e incentivadores da harmonia
familiar. Todos amamos encontrar um bode expiatório e o Arlequim é um
especialista neles. O tipo ideal de vítima apresenta alguma fraqueza física,
financeira ou intelectual. A ferida narcísica alheia é um deleite. A hemorragia
em chaga de terceiros pode ser sedutora. Claro, isso não inclui você, querida
leitora e estimado leitor, apenas as estranhas famílias do seu condomínio;
nunca a sua.
O Arlequim é engraçado porque tem a
liberdade que o mal confere a quem não sofre com as algemas do decoro. O
pequeno “menino diabo” (uma chance de etimologia) atrai, sintetiza, denega,
ressignifica e exorciza nossos muitos pequenos demônios. Aqui vem uma maldade
extra: ele nos perdoa dos nossos males por ser, publicamente, pior do que todos
nós. Na prática, ele nos autoriza a pensar mal, ironizar, fofocar e a vestir
todas as carapuças passivo-agressivas porque o faz sem culpa. O Arlequim é um
lugar quentinho para aninhar os ódios e dores que eu carrego, envergonhado.
Funciona como uma transferência de culpa que absolve meus pecadilhos por ser um
réu confesso da arte de humilhar.
Você aprendeu na infância que é feio rir
dos outros quando caem e que devemos evitar falar dos defeitos alheios. A boa
educação dialogou de forma complexa com nossa sedução pela dor alheia. O que
explicaria o trânsito lento para contemplar um acidente, o consumo de notícias
de escândalos de famosos e os risos com “videocassetadas”? Nossos pequenos
monstrinhos interiores, reprimidos duramente pelos bons costumes da aparência social,
podem receber ligeira alforria em casos de desgraça alheia e da presença de um
“arlequim”. Os seres do mal saem, riem, alegram-se com a dor alheia, acompanham
a piada e a humilhação que não seria permitida a eles pelo hospedeiro e,
tranquilos, voltam a dormir na alma de cada um até a próxima chamada
externa.
A astúcia do ator maldoso depende da
malícia da plateia. Falamos muito do fofoqueiro, por exemplo. É rara a análise
sobre a voz passiva daquele que não faz a fofoca, mas que dá espaço e ouvidos
para ela. Deploramos o piadista preconceituoso, poucos deixam de rir diante do
ataque frontal a outro.
Lacan falava que o limite conferia a
liberdade. Sem a placa de velocidade máxima, eu não seria livre para
ultrapassar ou ficar aquém do patamar máximo. Da mesma forma, ampliando a
ideia, o Bem é cronicamente dependente do Mal. Sem a oposição, nunca serei
alguém “do governo”. Batman e Coringa fazem parte de um jogo consentido de
vozes. Bocas que fazem detração necessitam de ouvidos aptos. Criminosos dependem
de cúmplices. A violência do campo de concentração necessita, ao menos, do
silêncio da maioria. Pierrots, Colombinas e Arlequins constituem um triângulo
amoroso, uma figura estável porque possui três ângulos visíveis. A perda de uma
parte desequilibraria o todo.
Olhar a perversidade do Arlequim é um
desafio. A mirada frontal e direta tem um pouco do poder paralisante de uma
Medusa. Ali está quem eu abomino e, ali, estou eu, meu inimigo e meu clone, o
que eu temo e aquilo que atrai meu desejo. Ser alguém “do bem” é conseguir
lidar com nossos próprios demônios como única chance de mantê-los sob controle.
Quando não consigo, há uma chance de eu apoiar todo Arlequim externo para
diminuir o peso dos meus. O fascismo dependeu de “alemães puros”; as
democracias efetivas demandam pessoas impuras, ambíguas, reais e falhas. O
autoconhecimento esvazia o humor agressivo dos outros. Esta é minha esperança.
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