Folha de S. Paulo
Slogan da esquerda de 1968 tornou-se
central para as direitas contemporâneas
Por que e em que momento a ideia da rebeldia foi apropriada pela direita? Foi com essa pergunta que o presidente chileno Gabriel Boric iniciou uma entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo. De fato, ao longo das últimas duas décadas, o "politicamente incorreto" ganhou ares de rebeldia. Hoje, o conhecido slogan da esquerda de 1968, "é proibido proibir", tornou-se central para as direitas contemporâneas.
As origens do fenômeno coincidem com a popularização da internet entre pessoas de classe média e alta. No início dos anos 2000, redes sociais como MySpace e Orkut, e fóruns como Reddit, 4chan e Vale Tudo, do brasileiro UOL Jogos, permitiram a circulação de ideias inusitadas, absurdas ou mesmo odiosas e violentas.
O propósito de direitistas que frequentavam tais espaços era demolir as
estruturas ideológicas do establishment a partir da periferia da esfera
pública. A esquerda era vista como hipócrita, corrompida e vendida à sociedade
de consumo, e a direita tradicional tida como abobalhada, tediosa e incapaz de
fazer frente aos avanços da esquerda no campo cultural.
Com o tempo, a partir da circulação crescente de memes, discursos que antes ficavam restritos a livros e fanzines obscuros começaram a atingir cada vez mais pessoas. Mas foi apenas quando a internet se massificou, e privilégios históricos começaram a ser questionados na esfera pública tradicional, amplificando o alcance do chamado "politicamente correto", que parcelas mais amplas da sociedade passaram a fazer coro à rebeldia de direita.
Para um segmento expressivo de trabalhadores, os avanços progressistas incomodam em várias frentes. Em primeiro lugar, há o incômodo com a possibilidade de que outros setores oprimidos possam roubar seu lugar na fila do pão. Depois, a percepção de que a família e a religião, suas principais fontes de proteção e acolhimento frente à violência e insegurança cotidianas, teriam passado a ser vilipendiadas. Mas mais do que isso, seu próprio modo de ser e estar no mundo, e seu orgulho, estariam sendo atacados de forma insistente e pedante pelo "politicamente correto".
O sentimento é de que qualquer deslize pode provocar
brigas na família, com amigos e conhecidos, ou até mesmo a perda do trabalho.
Daí a sensação constante de repressão e a catarse provocada por políticos e
influenciadores que "mandam a real, sem papas na língua", alardeando
uma suposta liberdade absoluta contra uma "ditadura do politicamente
correto capitaneada por esquerdistas".
Porém, o que ocorre de fato é que o mesmo
"ímpeto civilizatório" utilizado nas redes sociais para defender
grupos que historicamente são alvo de discriminação e violência não costuma se
estender à defesa de trabalhadores comuns. Sobretudo daqueles tidos como
ignorantes e atrasados.
Além disso, a esquerda não consegue enfrentar a opressão econômica e as
injustiças vivenciadas por largos setores da população, que incluem justamente
as pessoas tachadas de ignorantes e atrasadas. Na prática, o que prevalece é o
neoliberalismo progressista, que, na visão de vários trabalhadores, seria o
mesmo que defender os interesses dos ricos e o "politicamente
correto". E assim o homem comum fica abandonado à própria sorte e aos
rebeldes de direita, que aparentam ser mais "empáticos" com suas
angústias.
*Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
3 comentários:
Pois...
E a saída? Tem saída
Tem, mas demora tanto quanto o tempo da articulista ainda criança ir para a escola e depois, apesar disso, se tornar doutora.
Excelente artigo.
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