O Globo
STF transforma o exercício jornalístico em
atividade de risco
O gênio não voltará mais à lâmpada. Está
solto, para além da materialidade xandônica, à disposição do togado que o
quiser incorporar, ratificado até pelos do “cala a boca já morreu”. Qual a
surpresa — a defesa da democracia tendo produzido excessos autoritários — em o
Supremo, tribunal das jurisprudências de areia, tomar decisão inconstitucional?
O STF a transformar o exercício jornalístico
em atividade de risco, exposta a liberdade de imprensa à avaliação do juiz da
esquina. A Corte, pois, descentralizando as possibilidades de arreganho. Um
convite — não o primeiro — ao autoritarismo país adentro.
Não há outra definição a uma “tese” — chamaram de tese — que se fundamenta no conceito de “indício concreto”. A Corte constitucional, que deveria defender a estabilidade-previsibilidade nos usos da Lei, fundou a corresponsabilização de empresas jornalísticas pela publicação de entrevistas com “indícios concretos da falsidade da imputação”. (Houvesse esse recurso antes, talvez nem fosse preciso censurar a Crusoé.)
Eis a formulação-puxadinho do STF. Que
estimula o jornalismo de gabinete, sem dúvida uma garantia, a ser praticado por
meio do off oficial, não raro daquele que, imune a plantar falsas imputações em
suas versões, afinal julgará a “falsidade da imputação”.
O tribunal terá agora de explicar o que
significa a “tese”, já iniciada a campanha do “não é bem assim”. É, sim. Será
penoso observar. Porque, até para as práticas processuais do Judiciário, ou é
indício ou é concreto. Se a imprensa não puder trabalhar com a categoria
“indícios” para suas apurações, equivalerá a exigir mais do jornalismo que do
sistema judicial.
Já existem mecanismos funcionais de
responsabilização para casos de veiculação de conteúdos comprovadamente
caluniosos etc. O que o Supremo produziu, sob argumentação vaga, foi a fixação
de diretriz aberta, de natureza cerceadora, que plantará prevenções a uma
atividade que opera no campo da controvérsia. Sob repercussão geral, para
aplicação também em primeira instância, lançou as condições à censura prévia
derivada da autocensura.
O STF baixou a “tese”, sentiu a reação da
sociedade — e então correu o ministro Barroso a esclarecer informalmente
(evidência de decisão opaca) que o estabelecido seria somente para ocorrências
de exceção, veiculações sob má-fé ou com “abuso de negligência”; omitido que,
na hipótese de que houvesse algum, no mais das vezes não seria o bom senso do
STF a julgar as denúncias contra o jornalismo.
Não há bom senso.
Sendo a “tese” para casos excepcionais, e
sendo excepcional o próprio caso suscitador do julgamento, prudente seria que o
tribunal — sem fixar norte para repercussão geral — apenas julgasse os casos
quando concretamente surgissem. Caso a caso.
Não há prudência.
Aberta a porteira, quão arrombada poderá ser
a interpretação jurídica — contra jornalistas que incomodem julgadores, amigos
de julgadores e um ou outro “amigo do amigo do meu pai” — de “indício concreto
de falsidade”?
Não há prudência, prevalecente a Corte
constitucional que aterrou o comedimento, aterrada também a poesia outrora
erguida contra a censura prévia no Brasil. Não se chegou até aqui sem
contribuições variadas desde o Supremo, a partir do espírito diretor dos
inquéritos infinitos e onipresentes de Alexandre
de Moraes.
E então — para iluminar — Cármen Lúcia. Que,
em 20 de outubro de 2022, votou — enquanto dizia que “não se pode permitir a
volta da censura sob qualquer argumento” — pela censura prévia. Julgava-se, no
TSE, a suspensão da exibição de um documentário bolsonarista. Ela apoiou.
— Este é um caso específico e que estamos na
iminência de termos o segundo turno das eleições. A proposta é a inibição até o
dia 31 de outubro, exatamente o dia subsequente ao do segundo turno, para que
não haja o comprometimento da lisura, da higidez, da segurança do processo
eleitoral e dos direitos do eleitor.
Censura — chamou de “inibição” — com data
para acabar.
— Medidas como essas, mesmo que em face de
liminar, precisam ser tomadas como se fosse algo que pode ser veneno ou
remédio.
Veneno ou remédio?
— Se, de qualquer forma, senhor presidente,
isto se comprovar como desbordando para uma censura, deve ser imediatamente
reformulada esta decisão no sentido de se acatar integralmente a Constituição e
a garantia da liberdade.
Chancelava-se a censura preocupando-se com a
produção de censura pelo ato de censurar. Com a advertência, por ministra de
tribunal constitucional, de que, se a censura gerasse censura, rapidamente se
corresse — admitido o meio acatamento à Constituição — para respeitar a
Constituição.
Não se chegou até aqui de repente.
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