Valor Econômico
Uma aparente solução seria criar um programa
específico para a categoria que permitisse que esses trabalhadores vinculados a
plataformas se tornassem contribuintes do INSS
Um dos grandes desafios das políticas públicas na era atual é lidar com as mudanças no mercado de trabalho causadas pelos avanços tecnológicos, e aceleradas pelas adaptações para conviver com a pandemia. O destaque sem sombra de dúvidas é a escalada do modelo da economia de compartilhamento. Mais especificamente, no que veio a ser chamado de uberização, que, segundo o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) da Academia Brasileira de Letras, é um “termo usado para indicar a transição para o modelo de negócio sob demanda caracterizado pela relação informal de trabalho, que funciona por meio de um aplicativo (plataforma de economia colaborativa), criado e gerenciado por uma empresa de tecnologia que conecta os fornecedores de serviços diretamente aos clientes, a custos baixos e alta eficiência”.
Analisando o setor de transportes, é notório
que as grandes prestadoras dos serviços em plataformas digitais - tais como
Uber, 99, iFood, Rappi e Loggi - mantêm uma vinculação informal de trabalho com
a grande maioria de seus funcionários. Na falta de uma regulamentação
específica para a atividade, o trabalho informal vai se perpetuando e se
legitimando. Com isso, motoristas e entregadores têm ficado à mercê de uma
remuneração instável e da falta de seguro social. Não por acaso, o debate em
torno da criação de normas trabalhistas próprias para o negócio tem ganhado
proeminência. Afinal, a lógica da uberização foge aos padrões convencionais da
relação de trabalho.
Na realidade, esse não é um problema apenas
brasileiro. Lidar com a crescente uberização no setor de transportes tem sido
uma dor de cabeça para os mais diversos países. Na prática, ainda não há um
modelo de regulamentação que sirva como referência internacional. No Brasil,
representantes do governo, das plataformas e dos trabalhadores vêm batalhando
para encontrar um modelo que seja “adequado”. Além disso, há mais de cem
projetos legislativos no Congresso relativos à proteção social e trabalhista
dos empregados de plataformas digitais.
Na tentativa de trazer mais elementos para o
debate, o IBGE introduziu um módulo especial na Pnad Contínua de dezembro de
2022, cujo propósito era investigar a parcela da população ocupada (PO) que usa
as plataformas digitais em seu ofício. O grupo de trabalhadores uberizados em
transportes - grosso modo, motoristas e entregadores - somava cerca de 1
milhão.
A partir dos microdados do módulo especial da
PnadC, meus colegas Fernando de Holanda Barbosa Filho, Fernando Veloso e Paulo
Peruchetti traçaram o perfil sociodemográfico dos profissionais uberizados de
transportes. Esses perfis foram comparados com o dos 99,4 milhões que compõem a
PO brasileira.
Existem pelo menos dois dos muitos cotejos
levantados pelos pesquisadores que merecem destaque. Em primeiro lugar, quando
a questão é Previdência, constata-se que somente 25% dos uberizados de
transportes fazem contribuições previdenciárias, ao passo que, do conjunto dos
brasileiros que tem alguma ocupação, uma fatia bem mais elevada, de 65%,
contribui para a Previdência.
Um segundo contraste a ser mencionado é a
discrepância em termos do perfil educacional. Enquanto a parcela dos uberizados
em transportes sem instrução ou com ensino básico incompleto não chega a 8%, na
população brasileira ocupada como um todo esse percentual pula para quase 21%.
No outro extremo da distribuição, a toada é similar: apenas um pouco mais de
10% dos funcionários uberizados em transportes possuem o superior completo,
frente a uma fatia muito maior, de quase 23% para toda a PO do país. Por conseguinte,
o nível intermediário educacional - entre fundamental completo e superior
incompleto - acumula o expressivo contingente de 82% dos profissionais
uberizados em transportes, quando comparado aos 57% encontrados na PO
brasileira.
A combinação da forte concentração de
uberizados, 82%, possuindo uma formação educacional intermediária conjugada à
participação de tão somente 25% deles como contribuintes do sistema
previdenciário salta aos olhos, e sugere a urgência de um novo arcabouço de
normas trabalhistas para a uberização no setor de transportes. Afinal, parece
não fazer sentido que um contingente tão expressivo de pessoas que tenham
investido em educação esteja caminhando para chegar na terceira idade sem uma
aposentadoria, e tendo que contar com o sistema de assistência social. Além do
mais, já hoje, os uberizados não dispõem de uma proteção social que lhes
garanta alguma renda caso tenham que ficar afastados do trabalho. Nunca é
demais lembrar que tanto motoristas quanto entregadores por aplicativo se
submetem nas suas atividades profissionais a riscos não desprezíveis, inerentes
à atividade de transporte.
Como sanar, ou pelo menos mitigar, o problema
da falta de seguridade social dos uberizados? Uma aparente solução seria criar
um programa específico para a categoria que permitisse que os uberizados se
tornassem contribuintes do INSS. De fato, essa iniciativa já foi lançada quando
da aprovação do decreto do governo federal (Decreto 9.792/19) que estabeleceu a
possibilidade de motoristas de plataforma poderem se cadastrar como MEI.
Embora a contribuição para o MEI seja pouco
dispendiosa para o uberizado-contribuinte (somente 5% do salário mínimo) - e
bastante onerosa para as contas públicas -, a política não surtiu o efeito
desejado, vide as baixas proporções de contribuintes para a Previdência dos
uberizados de transportes.
Enfim, com base nas nuances da atividade e na
experiência vivida, a solução a ser construída para a seguridade social dos
uberizados em transportes passa, necessariamente, por um envolvimento efetivo
das empresas em duas linhas de ação de natureza distintas. Num primeiro eixo,
capitaneando campanhas de esclarecimento junto aos trabalhadores da importância
do seguro social. Em uma segunda frente, tendo papel importante na contribuição
para o INSS de seus empregados.
*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre
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