O Globo
O disparo vem à distância, não tem autoria, e
as mortes que provoca não têm rosto. Os ainda vivos, em fuga, também não
O vídeo dura menos de um minuto e meio. Quem
a ele assiste torna-se, para sempre, condenado a ser testemunha do horror. Não
há escapatória, impossível “desver”, inútil buscar racionalidade à cena. Ela
ultrapassa qualquer régua moral, política ou religiosa. É, em essência, o
retrato da guerra captada pelo fotojornalista de Gaza Motaz Azaiza. Há quase
dois meses, Azaiza registra o que vê à sua volta, e posta o que viu nas redes
sociais. Na semana passada, quando novo bombardeio israelense atingiu seu bairro
e vizinhos, Azaiza estava a postos. É esse minuto e meio que precisa ficar
registrado aqui. Não fazê-lo seria silenciar o horror.
No massacre do Hamas contra civis israelenses, em 7 de outubro, os momentos mais sórdidos da infâmia foram mano a mano, com o algoz terrorista inebriado pelo terror da vítima em suas mãos. Missão cumprida. No caso dos bombardeios punitivos de Israel, o disparo vem à distância, não tem autoria, e as mortes que provoca não têm rosto. Os ainda vivos, em fuga, também não. Missão em curso.
Psicólogos sociais esquadrinham pesquisas
atestando quanto o ser humano procura encontrar alguma coerência, propósito ou
significado à vida, ao ato e ao fato de viver. Neste fim de 2023, os tempos são
de desnorteamento e dor — uma dor, ora individual, ora coletiva, que não usa
máscara. De qualquer ângulo que se olhe, o que se vê é um vácuo — vácuo de
compaixão, excesso de certezas vazias. Tomar conta deste mundo dá trabalho e
exige paciência, já sabia Clarice Lispector.
Em tempos assim, é um deleite inofensivo e
terno frequentar o site The Red Hand Files, criado por Nick Cave cinco anos
atrás. O extraordinário músico australiano, que frequentou os cantos mais
escuros da alma humana, havia perdido dois filhos (o adolescente Arthur caiu de
um precipício na Inglaterra, e Jethro, aos 31 anos, sofreu morte súbita). Cave
conseguiu se reerguer abrindo um canal de comunicação direta com a vida, na
pessoa de sua legião de fãs. Passou a responder, pessoalmente, à enxurrada de
perguntas que lhe chegam por escrito — até o ano passado elas somavam mais de
50 mil. Suas respostas são singelas e profundas, nunca impensadas ou
insinceras.
Uma alma inquieta chamada Raymond, de Dallas
(Texas), queria saber se o cantor se considerava otimista. Recebeu a seguinte
resposta:
— Esperança e otimismo podem ser forças
diferentes, quase opostas. A esperança brota de um sofrer sentido. É a centelha
desafiadora e dissidente que se recusa a ser extinta. O otimismo pode ser o
negacionismo do tal sofrer, o medo de encarar a escuridão, a ausência de
percepção, uma espécie de cegueira do real. Esperança é amadurecimento e
desobediência. Otimismo pode ser temeroso e falso.
Outro seguidor, da Eslovênia, perguntou se a
inteligência artificial seria capaz de criar o sublime (na canção ou em
música). Cave primeiro citou o autor de “Sapiens”, Yuval Noah Harari, para quem
a IA será capaz de criar músicas ainda melhores que os humanos, pois conseguirá
mapear o estado d’alma de quem faz o pedido. Um algoritmo sob medida para
satisfazer à necessidade emocional do cliente — se está sentindo alegria,
tristeza, saudade, desejo.
— Só que músicas fazem bem mais que isso —
esclareceu o cantor. — Uma canção excepcional nos inunda de assombro, e essa
sensação deriva exclusivamente de nossos limites como seres humanos. Tem a ver
com a audácia humana de ir além de nosso potencial.
Ou, como definiu Franz Kafka, música é o som
da alma, a voz direta do mundo subjetivo.
Até mesmo à pergunta raiz das civilizações:
— Deus existe?
Ele respondeu de forma franca:
— Não tenho nenhuma evidência num sentido ou
noutro, mas talvez essa não seja a pergunta correta. Para mim, a questão é “o
que significa crer?”. Mesmo contra a vontade, acho impossível não crer ou, pelo
menos, não se envolver com a busca por uma resposta, o que no fundo dá no
mesmo. Minha vida está dominada pela noção de Deus, seja por sua presença ou
ausência.
São muitas as dores do mundo, e neste período
de festas judaico-cristãs parece até imperativo embalar-se em crenças. Só que
elas de pouco ou nada adiantam quando o ser humano perde contato com a
humanidade.
2 comentários:
Muitas vezes ouvi alguém dizendo: "De médico e louco, todos têm um pouco"...
O artigo é ótimo.
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