Valor Econômico
Golpismo dos manifestantes não encontrou eco
nos discursos mas serve de alerta contra a polarização
O fosso entre aquilo que os manifestantes do
domingo na avenida Paulista queriam ouvir e aquilo que foi dito no palanque
contém um alerta desprezado pelo partido do presidente da República e
movimentos sociais e até por setores do governo.
Não era fácil encontrar alguém naquela
avenida que acreditasse na lisura do processo que colocou Luiz Inácio Lula da
Silva no poder. Esta dificuldade foi mensurada pelo Monitor Digital da USP, que
atestou a crença de 88% dos manifestantes de que a eleição de Lula foi
fraudada.
Esta expressiva maioria de manifestantes não
encontrou eco no palanque. Não ouviu isso do estridente Silas Malafaia, que
protestou contra a “perseguição” a Jair Bolsonaro mas não questionou o
resultado, nem da pastora Michelle e menos ainda do ex-presidente, que só
queria mesmo “apagar o passado”.
Talvez por isso quando a Genial/Quaest saiu
pelo país a perguntar sobre a manifestação, identificaria, em apenas 11% de
seus questionários, a convicção de que aquele ato frearia as investigações em
curso.
Esta frustração acomodará o golpismo? É o cerco do Supremo aos militares que o fará. O mais provável é que a insatisfação dos bolsonaristas sobreviva como uma centelha da radicalização.
Por isso, o ato convocado para o dia 24 de
março pelo PT, PCdoB, PSol, MST e UNE pela prisão de Bolsonaro e a favor da
democracia é um fósforo num ambiente propício à combustão.
Seus organizadores informam que os planos de
realizá-lo já existiam antes deste ato de Bolsonaro e que, à pauta dos 60 anos
do golpe de 1964, se acresceu a do #SemAnistia.
Na entrevista a Kennedy Alencar, Lula não se
incomodou em desagradar seu partido. Disse estar mais preocupado como 8/1 do
que com o 31/3. Deu eco ao presidente do Superior Tribunal Militar, Joseli
Camelo, sobre o julgamento histórico dos militares, mas não foi além.
Disse ainda que o golpe já causou muito
sofrimento mas o povo conquistou a democracia e que era a hora de colocar o
país na rota do crescimento e não de remoer o passado.
Não se faz história sem memória, mas Lula já
percebeu os riscos que o cultivo desta efeméride em praça pública traz à
conjuntura. O primeiro é o de esta manifestação colocar muito menos gente na
rua, gerando uma comparação inevitável com a de domingo.
A esquerda tem baixa capacidade de mobilizar
mas converge com a maioria da população nesta pauta. Segundo a Genial/Quaest, a
maioria acha que Bolsonaro não está sendo perseguido, que é justo torná-lo
inelegível e prendê-lo.
Um segundo risco é o de se criar uma
polarização que hoje não está presente. A anistia hoje está restrita à proposta
do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), mas não está na pauta que norteia
o Congresso e, muito menos, o Judiciário.
Lula foi preciso ao ser indagado sobre
anistia ao dizer que Bolsonaro primeiro precisa ser julgado. Claramente negou
seu apoio à pauta.
O terceiro risco é o de que a manifestação se
transforme naquilo que não será. Quem assistiu à manifestação “EleNão” no fim
de semana anterior ao 1º turno de 2018 há de lembrar como aquele congraçamento,
convocado em protesto contra a misoginia bolsonarista, se transformou, nas
redes sociais, num festival de mulheres defecando nas ruas, com seios de fora e
sexo ao ar livre.
Em estudo sobre as 72 horas que mudaram
aquela campanha, Beto Vasques, do Democracia em Xeque, mostrou como, na véspera
daquela manifestação no sábado, 29 de setembro, Fernando Haddad se colocava à
frente pela primeira vez ante um Bolsonaro estagnado.
No domingo, a depravação fabricada tomou
conta do púlpito dos cultos pentecostais. Não deu outra. Na segunda-feira,
Bolsonaro aparecia disparado nas intenções de voto e Haddad, na rejeição. No
fim de semana seguinte, o ex-presidente passaria para o 2° turno com quase 18
milhões de votos à frente.
A resiliência desta fábrica de realidades
paralelas, aperfeiçoada tecnologicamente, levou o Tribunal Superior Eleitoral a
editar, pela primeira vez, uma resolução que limita o uso da inteligência
artificial nas eleições municipais.
O governo, porém, não pode delegar este
combate inteiramente ao Judiciário. E, menos ainda, incitar a polarização. A
despeito das evidências de que esta só beneficia e dá sobrevida ao
bolsonarismo, ainda há, no Palácio do Planalto, quem tenha visto na polêmica do
Holocausto um “despertar da militância”.
São os mesmos que aplaudem as vaias a
jornalistas que fazem perguntas incômodas a Lula ou que vibram com a barreira
da Gaviões da Fiel à entrada de manifestantes nos vagões do metrô no domingo.
Só não são capazes de pautar inteiramente o
presidente. Sua estratégia no tema Gaza é clara. Diz que não arreda o pé de sua
declaração, mas não voltou a falar de Hitler e repisa o “genocídio” sempre que
pode. Opta por um termo que não aparenta recuo e, ao mesmo tempo, não atiça o
debate da mesma forma.
É bem verdade que o governo e o PT precisam
de militância nas redes sociais, mas a polarização hoje desfavorece Lula. Não
há alternativa senão a da conquista do centro e o desarme das trincheiras do
bolsonarismo.
Foi o que fez o governo ao ampliar a isenção tributária às igrejas e ao recuar da reoneração de setores da economia. As medidas colidem com a justiça tributária de Haddad, mas circunscrevem a oposição ao apelo ideológico. Isolá-la nas pautas da vida real é a única saída para evitar a combustão.
Um comentário:
Pode ser.
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