Folha de S. Paulo
As emendas são parte das relações
Executivo-Legislativo desde 1946 mas sua dinâmica se alterou radicalmente ao
longo do tempo
A resposta à pergunta que dá o título a esta coluna exige que recuemos na história. As emendas orçamentárias têm sido parte do funcionamento do nosso presidencialismo multipartidário desde 1946, quando tivemos as primeiras eleições com representação proporcional com lista aberta (RPLA). A RPLA em grandes distritos eleitorais produz fragmentação partidária e o imperativo de formação de governos de coalizão. Barbosa Lima Sobrinho, ex-governador de Pernambuco, intuiu suas implicações: "não conheço melhor sistema para a representação das minorias, nem pior para a constituição de maiorias" (1952).
Por outro lado, a sobrevivência eleitoral dos
parlamentares sob a RPLA envolve a capacidade de atrair benefícios para suas
bases territoriais. Em troca oferecem lealdade política ao Executivo —processo
que envolve em maior ou menor medida a mediação de líderes partidários e
presidentes das casas.
Hermes Lima, ministro de Getúlio, ex-juiz
(cassado) do STF, e também ex-primeiro-ministro em 1963, foi pioneiro no
diagnóstico do processo de construção de coalizões: "o espetáculo das
maiorias feitas aos pedaços, instáveis, artificiais e onerosas, que os
presidentes e governadores são compelidos a arranjar nas Câmaras". E
apontou para "combinações oportunistas e esdrúxulas que exaurem a vida
política num processo contínuo de reajustamentos, compromissos, imposições e
cumplicidade. Maiorias débeis vizinhas da corrupção". E mais: fala dos
"descomedimentos de toda espécie" (1955).
Aqui chegamos finalmente às emendas
orçamentárias: "Não é por outro motivo que as emendas ao orçamento na
Câmara se apresentam aos milhares dificultando, impossibilitando mesmo um
planejamento razoável de obras e serviços na lei ânua". E completa:
"Cada deputado necessita de votos no estado inteiro e julga-se no dever de
distribuir, por intermédio da lei orçamentária, verbas e auxílios pelo estado
inteiro" (1955).
A partir de 1988, o jogo descrito por Lima
adquiriu outra dinâmica na qual o protagonista passou a ser o presidente. A
assimetria nas relações Executivo-Legislativo perdurou até 2015.
Paulatinamente, o Congresso ampliou
suas prerrogativas, que levou, sob Bolsonaro, a uma espécie de hiperdelegação
por parte do Executivo —agora centralizado sob comando dos presidentes das duas
casas—, o que persistiu com Lula. A novidade que agora temos é uma bizarra
patologia: o STF assumindo funções de uma espécie de controle prévio —interno e
externo— de emendas.
As emendas em seu formato atual são o sintoma
de uma disfunção mais geral no nosso presidencialismo, que provavelmente não
retornará ao equilíbrio de Presidente Forte anterior. O Executivo só voltará a
ser protagonista quando contar com mais poderes partidários (expandindo sua
bancada), houver maior congruência entre as preferências da coalizão de governo
e a mediana do Congresso; quando os ministérios forem alocados de forma mais
proporcional à base; além de fatores contextuais favoráveis no que diz respeito
à economia, popularidade presidencial, avaliação do governo, e menor
polarização.
Reformas no sistema orçamentário —reduzindo o
individualismo na formulação de emendas e aumentando os incentivos partidários
e de bancada— apenas mitigariam o problema.
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