segunda-feira, 3 de março de 2025

Deus, amor e tarifas – Demétrio Magnoli

O Globo

A globalização não depende exclusivamente do mercado dos Estados Unidos

Tarifas. Na campanha eleitoral, Trump definiu-a como sua predileta, “a mais linda palavra”. Depois, na hora do triunfo, rebaixou-a para o terceiro posto, atrás de Deus e amor. A paixão tarifária do presidente tem o poder de mudar o mundo — mas não do modo como ele almeja.

Sob a lógica de Trump, tarifas cumprem três finalidades diferentes: geopolíticas, comerciais e industriais. Seriam ferramentas de intimidação, de substituição de importações e de reequilíbrio da balança comercial americana.

Theodore Roosevelt inventou o Big Stick: “Falar suavemente e carregar um Grande Porrete”. A ideia era negociar os interesses imperiais dos Estados Unidos usando a ameaça da ação militar. Deu certo, nos casos do Canal do Panamá e de Cuba. Trump inspira-se no precedente, mas substitui a Grande Frota Branca de 16 navios de guerra pela espada das taxas alfandegárias.

A intimidação via tarifas dirige-se contra aliados, como a Dinamarca, instada a vender a Groenlândia; o Panamá, chamado a devolver o Canal ao controle dos Estados Unidos; o México e o Canadá, que deveriam reprimir o fluxo real ou quimérico de migrantes e drogas através das fronteiras. Não funcionará, exceto para fabricar encenações midiáticas dos dois vizinhos norte-americanos.

Tarifas sobre bens industriais importados formaram a espinha dorsal das políticas de substituição de importações deflagradas em 1890 nos Estados Unidos pelo presidente McKinley e, mais tarde, desde a década de 1930, por países em desenvolvimento, inclusive o Brasil. Trump sonha tornar os Estados Unidos “grandes novamente” por meio de um salto radical ao passado, que obrigaria as empresas a relocalizar suas unidades produtivas no território americano. É a receita certa para um fracasso monumental.

Atualmente, o conceito de “economia nacional americana” só tem sentidos abstratos, expressos nos gráficos do PIB. A fabricação de um iPhone depende de cadeias globais de suprimentos que enlaçam dezenas de países e milhares de produtores. As novas tarifas sobre alumínio e aço não ressuscitarão a agonizante indústria siderúrgica americana, mas resultarão em fortes pressões inflacionárias. A indústria automobilística dos Estados Unidos é, de fato, uma indústria norte-americana, assentada sobre complexas cadeias de suprimentos que atravessam as fronteiras do México e do Canadá. As tarifas prometidas por Trump destruiriam o edifício que propicia a oferta de automóveis baratos aos consumidores americanos.

Trump enxerga o comércio sob um prisma mercantilista: balança comercial superavitária indicaria sucesso. Dessa noção anacrônica emerge a política de tarifas contra os principais parceiros comerciais, com que os Estados Unidos mantêm intercâmbio altamente deficitário: China, União Europeia, México e Canadá.

A eliminação dos déficits provocaria um terremoto econômico de magnitude global, com perdas para todos, especialmente os próprios Estados Unidos. Ao contrário do que imagina Trump, a prosperidade dos Estados Unidos deriva em larga medida de seu déficit comercial, sustentado pela função especial do dólar de “moeda do mundo”. Para os Estados Unidos, intercâmbio deficitário significa sucesso: a garantia do elevado poder de compra dos consumidores americanos.

O movimento que Trump lidera representa uma reação pós-moderna à modernidade. No plano geopolítico, o presidente pretende implodir as instituições multilaterais criadas no Pós-Guerra para restaurar um mundo baseado em esferas de influência das grandes potências. No plano econômico, anseia por implodir a teia da globalização a fim de reinaugurar uma economia nacional protegida da concorrência externa.

O primeiro objetivo pode ser alcançado, em benefício da China e da Rússia. O segundo é uma utopia regressiva. A globalização não depende exclusivamente do mercado dos Estados Unidos. Se aplicada extensivamente, a política de tarifas de Trump não provocará desglobalização, mas um deslocamento da globalização para fora dos Estados Unidos — e, com isso, uma redução acelerada da influência econômica americana.

Trump elegeu-se brandindo o espectro do declínio dos Estados Unidos. De fato, sua deificação das tarifas é que pode impulsionar a marcha declinista.


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