O Globo
A globalização não depende exclusivamente do
mercado dos Estados Unidos
Tarifas. Na campanha eleitoral, Trump
definiu-a como sua predileta, “a mais linda palavra”. Depois, na hora do
triunfo, rebaixou-a para o terceiro posto, atrás de Deus e amor. A paixão
tarifária do presidente tem o poder de mudar o mundo — mas não do modo como ele
almeja.
Sob a lógica de Trump, tarifas cumprem três
finalidades diferentes: geopolíticas, comerciais e industriais. Seriam
ferramentas de intimidação, de substituição de importações e de reequilíbrio da
balança comercial americana.
Theodore Roosevelt inventou o Big Stick: “Falar suavemente e carregar um Grande Porrete”. A ideia era negociar os interesses imperiais dos Estados Unidos usando a ameaça da ação militar. Deu certo, nos casos do Canal do Panamá e de Cuba. Trump inspira-se no precedente, mas substitui a Grande Frota Branca de 16 navios de guerra pela espada das taxas alfandegárias.
A intimidação via tarifas dirige-se contra
aliados, como a Dinamarca, instada a vender a Groenlândia; o Panamá, chamado a
devolver o Canal ao controle dos Estados Unidos; o México e
o Canadá,
que deveriam reprimir o fluxo real ou quimérico de migrantes e drogas através
das fronteiras. Não funcionará, exceto para fabricar encenações midiáticas dos
dois vizinhos norte-americanos.
Tarifas sobre bens industriais importados
formaram a espinha dorsal das políticas de substituição de importações
deflagradas em 1890 nos Estados Unidos pelo presidente McKinley e, mais tarde,
desde a década de 1930, por países em desenvolvimento, inclusive o Brasil.
Trump sonha tornar os Estados Unidos “grandes novamente” por meio de um salto
radical ao passado, que obrigaria as empresas a relocalizar suas unidades
produtivas no território americano. É a receita certa para um fracasso
monumental.
Atualmente, o conceito de “economia nacional
americana” só tem sentidos abstratos, expressos nos gráficos do PIB. A fabricação
de um iPhone depende
de cadeias globais de suprimentos que enlaçam dezenas de países e milhares de
produtores. As novas tarifas sobre alumínio e aço não ressuscitarão a
agonizante indústria siderúrgica americana, mas resultarão em fortes pressões
inflacionárias. A indústria automobilística dos Estados Unidos é, de fato, uma
indústria norte-americana, assentada sobre complexas cadeias de suprimentos que
atravessam as fronteiras do México e do Canadá. As tarifas prometidas por Trump
destruiriam o edifício que propicia a oferta de automóveis baratos aos
consumidores americanos.
Trump enxerga o comércio sob um prisma
mercantilista: balança comercial superavitária indicaria sucesso. Dessa noção
anacrônica emerge a política de tarifas contra os principais parceiros
comerciais, com que os Estados Unidos mantêm intercâmbio altamente
deficitário: China,
União Europeia, México e Canadá.
A eliminação dos déficits provocaria um
terremoto econômico de magnitude global, com perdas para todos, especialmente
os próprios Estados Unidos. Ao contrário do que imagina Trump, a prosperidade
dos Estados Unidos deriva em larga medida de seu déficit comercial, sustentado
pela função especial do dólar de “moeda do mundo”. Para os Estados Unidos,
intercâmbio deficitário significa sucesso: a garantia do elevado poder de
compra dos consumidores americanos.
O movimento que Trump lidera representa uma
reação pós-moderna à modernidade. No plano geopolítico, o presidente pretende
implodir as instituições multilaterais criadas no Pós-Guerra para restaurar um
mundo baseado em esferas de influência das grandes potências. No plano
econômico, anseia por implodir a teia da globalização a fim de reinaugurar uma
economia nacional protegida da concorrência externa.
O primeiro objetivo pode ser alcançado, em
benefício da China e da Rússia. O segundo é
uma utopia regressiva. A globalização não depende exclusivamente do mercado dos
Estados Unidos. Se aplicada extensivamente, a política de tarifas de Trump não
provocará desglobalização, mas um deslocamento da globalização para fora dos
Estados Unidos — e, com isso, uma redução acelerada da influência econômica
americana.
Trump elegeu-se brandindo o espectro do
declínio dos Estados Unidos. De fato, sua deificação das tarifas é que pode
impulsionar a marcha declinista.
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